História secreta relata pandemia de peste
O escritor é Procópio de Cesarea (não confundir com figura
do mesmo nome, mártir cristão, canonizado pela Igreja Católica como São Procópio
de Cesarea). O livro? “História secreta de Justiniano I”. Assunto: devastadora
epidemia de peste bubônica que assolou Bizâncio, a versão oriental do Império
romano, cuja capital era Constantinopla. Ano: 540 da nossa era. Essa obra,
pouco conhecida e não muito divulgada, até mesmo das escritas por esse ilustre
historiador, publicada na França, em 1669 (não sei se tem versões em outros
idiomas) é historicamente importante por se tratar do primeiro registro escrito
de uma pandemia. Em outros tantos textos anteriores que chegaram até nós, a
doença é apenas mencionada, não raro de passagem, para completar o cenário em
que os escritores situaram seus temas. A epidemia em questão não ficou restrita
a Bizâncio. Propagou-se por toda a Europa meridional e durou praticamente um
século (se não mais). Imaginem quantas pessoas matou, levando em conta a
absoluta ausência de recursos da época, quando se desconheciam, até, as causas
da peste! A quantidade de vítimas fatais pode, apenas, ser grosseiramente
estimada.
Prova de que determinadas regiões européias foram assoladas
por este flagelo é o relato feito pelo escritor francês Gregoire de Tours que,
em seu livro “Histoires” relatou que por volta do ano 590, portanto 50 anos
depois do início da epidemia em Bizâncio, a peste dizimou multidões notadamente
no Sul da Gália. Procópio de Cesaréa focaliza seu relato em especial em
Antioquia, mas sem deixar de citar o que acontecia nas demais cidades do
Império Bizantino. Isso faz todo o sentido. Afinal, tratava-se da terceira mais
populosa metrópole do mundo da época, a maior povoação urbana do Oriente. Em
termos mundiais, só perdia para Roma e Alexandria. Tinha, no auge, população
estimada em meio milhão de habitantes, o que, então, era uma enormidade. Guardadas
as devidas proporções, Antioquia poderia ser comparada, em importância, a
metrópoles atuais do porte de Nova York, ou de Londres ou de Tóquio.
Procópio é considerado pelos especialistas como o último historiador
da chamada Antiguidade tardia. Nasceu na cidade palestina de Cesarea, daí sua
cidade natal ter sido incorporada ao seu nome, como era o costume da época.
Seus livros foram escritos no idioma grego clássico, sendo que tomou, como
modelo, os dois maiores historiadores da Grécia antiga: Heródoto e Tucidides. Sua
obra mais famosa é a “História” do reinado de Justiniano I, em oito volumes, exaltando
os feitos do imperador, sem trazer uma única linha que o desmerecesse, ou seja,
sem nem mesmo insinuar os desmandos, crimes e atos de corrupção (que não foram
poucos) desse governante. Não foi, no entanto, como procedeu em “História
secreta” (que no original tinha o sugestivo título de “Anedokta”), cuja autoria
sempre negou (por razões compreensíveis, para evitar represálias e retaliações),
mas que ficou amplamente comprovada após sua morte.
Esse livro permaneceu perdido por vários séculos até que foi
descoberto (dizem que por acaso) na Biblioteca do Vaticano (e ninguém nunca
soube explicar como foi parar lá). Flavius Petrus Sabbatius Justinianus, ou
simplesmente Justiniano I, o Grande, assumiu o poder em 1º de agosto de 527 e
reinou por 38 anos, até sua morte, em 14 de novembro de 565. Originário de
família humilde, caiu nas graças de seu antecessor, por sinal seu tio, Justino
I, a quem viria a suceder. Consta que era “dominado” pela mulher, Teodora, ex-atriz
e ex-prostituta, cuja descrição de suas estripulias Procópio fez em detalhes,
não poupando nada em seu livro. Explica-se, pois, porque sempre negou ser o
autor dessa obra. A grande ambição de Justiniano era restabelecer a glória de
Roma antiga. Até certo ponto, conseguiu. Mas...
E onde entra a peste bubônica nesta história? Bem, segundo o
relato do historiador, a epidemia teria começado após devastador terremoto que
assolou a região. Ele descreve assim essa sucessão de tragédias: “(...)
Catastróficos tremores de terra assolaram Antioquia, a primeira cidade do
Oriente (...) Todas as cidades dos arredores foram, naquela época, assoladas
pelo terremoto e seus habitantes morreram quase todos. Chegou a peste, que
mencionei anteriormente, que dizimou pelo menos a metade dos moradores. Tal foi
a destruição que assolou a humanidade a partir de quando Justiniano cobrou os
impostos devidos ao governo e que se prolongou pelo período da sua autoridade”.
Ou seja, a pandemia não foi debelada, pelo menos, até 565. E, de acordo com
Gregoire de Tours, espalhou-se por toda a Europa meridional e não havia sido
controlada pelo menos por volta do ano de 590.
Este foi o primeiro registro escrito que chegou até nós da
ocorrência da peste bubônica, mas não como epidemia, ou seja, restrita a
determinadas cidades, como outros escritores fizeram, porém em forma de “pandemia”,
atingindo grande parte do mundo conhecido de então (possivelmente a totalidade
do Planeta). Foi uma das tantas vezes em que essa letal doença – ainda não de
todo extinta, posto que controlada – ameaçou extinguir toda a espécie humana da
face da Terra.
Boa leitura.
O Editor.
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Medo justificado quando vivemos outra pandemia de resultados ainda desconhecidos.
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