Vitória da persistência
O folclore de qualquer
povo, ou seja, o conjunto de suas festas, comidas típicas, artesanato característico
e outras tantas manifestações artísticas e culturais, assim como a vida, é
dinâmico. Em alguns casos, mantém-se intacto, geração após geração, sem sofrer
a mínima mudança ou adaptação. Em outros, modifica-se, adapta-se aos novos
tempos, moderniza-se, embora nem sempre essas alterações sejam para melhor. E
há circunstâncias em que até chega a desaparecer, sem deixar vestígios, por
falta de interesse das pessoas de conservarem as tradições instituídas e consolidadas
pelos ancestrais. Depende de cada povo.
O folguedo “Boi bumbá”,
no Estado de Rondônia, “importado” de outras regiões do País, levado para lá
pelos migrantes do Norte e do Nordeste, perdeu suas características originais.
Mas ao contrário do que aconteceu com outras tantas manifestações folclóricas
que foram descaracterizadas e que, sem suas raízes, desapareceram, adquiriu “cor
local”, fortaleceu-se com isso e sobreviveu. E não somente isso, mas
desenvolveu-se e se consolidou. Hoje, esse folguedo, em Rondônia, pouco lembra
seu modelo original. Tornou-se uma vertente nova, porém vigorosa, desse auto do
ciclo natalino.
Essa manifestação
folclórica tinha tudo para desaparecer de vez naquela parte do País. Durante
muitos anos, o folclore, naquele Estado, foi relegado, pelas autoridades, dos
seus diversos governos, ao absoluto ostracismo. Passou anos e anos sem receber
verbas e nem incentivos de quaisquer espécie, por ser considerado coisa
supérflua e sem nenhuma relevância. Pior, o “Boi bumbá” chegou a ser
criminalizado e proibido, por ser tido e havido como mero pretexto para
confusões e badernas.
Durante boa parte do
regime militar de 1964, os principais cargos administrativos do então
território federal foram ocupados por políticos que não tinham absolutamente
nada a ver com a região. Muitos conheceram Rondônia apenas quando nomeados para
suas funções. Por desconhecerem a cultura rondoniense, não poderiam dar (e não
lhe deram) o devido valor. Além de não valorizarem, ainda perseguiram os
praticantes das manifestações folclóricas típicas locais, entre as quais o “Boi
bumbá”, considerado por muito tempo como “festa de bêbados e vagabundos”. Ah, a
ignorância, quantos males não causa mundo afora!!! Essa persistente perseguição
quase fez o folguedo desaparecer sem deixar vestígios.
Para o escritor Matias
Mendes, a retração que o “Boi bumbá” enfrentou, em decorrência de tão feroz
oposição, teve um aspecto que, no final das contas, se mostrou sumamente
positivo. Ocorre que muitos detalhes que caracterizavam esse folguedo, entre os
quais suas típicas toadas e coreografias, foram sendo esquecidos e se perderam
no tempo. Quando os grupos que o praticavam retomaram a prática, interrompida
por muitos anos tiveram que recorrer a improvisações e adaptações, para
substituir o que havia sido esquecido.
O resultado dessas
mudanças forçadas foi que o “Boi bumbá”, em Rondônia, adquiriu características
próprias, rigorosamente distintas das de outras regiões do País. Hoje, pode-se
dizer, sem erro, que esse folguedo já é uma festa folclórica exclusivamente
rondoniense, da forma que é apresentada. Guardou pouquíssima coisa de sua matriz
original. Embora o enredo tenha se conservado, a maneira de ser narrado, além das
cantigas, danças e evoluções, são tipicamente locais. Foi assim que o “Boi bumbá”
sobreviveu em Rondônia. Consolidou-se. Adquiriu feições locais. Hoje está mais
vivo do que nunca e, reitero, com características rigorosamente próprias. Foi a
vitória da persistência.
Uma das mudanças que
deram certo foi a de acabar com a limitação de participantes. Não há mais
nenhum limite para isso. Participam quantos e quais grupos quiserem, com número
ilimitado de membros. Um dos mais populares do Estado, por exemplo, o “Estrela
de Rondônia”, conta com 42 figurantes. Mas essa quantidade pode aumentar ou
diminuir, de acordo com a vontade ou a necessidade dos seus dirigentes.
Há limitações, somente,
para os principais personagens de um “Boi bumbá”, que são os mesmos que
caracterizam esse folguedo em qualquer outra parte do País. E estes são,
obrigatoriamente: Pai Francisco (Preto Velho), Catirina (mulher do Preto
Velho), Cazumbá (Preto Velho companheiro de Pai Francisco), Mãe Maria (mulher
de Cazumbá), Bicho Folha (diretor de índios), Doutor da Medicina, Doutor
Relâmpago, Doutor da Vida, Padre Curandeiro, Sacristão, Miolo de Boi (pessoa
que fica sob a armação da fantasia do boi), Miolo da Burrinha (acompanhante do
boi na dança), Vaqueiros auxiliares, índios e batuqueiros. Voltarei ao assunto.
Boa leitura.
O Editor.
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A uniformização imposta pela televisão torna ainda mais incrível a persistência dessas manifestações folclóricas únicas, e sem similar nem no local de origem. Muito interessante.
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