O garoto que podia voar
* Por
Alberto Cohen
Hoje eu falei com Deus.
Pedi perdão pelos meus sessenta e cinco anos de queixas e lamentações e
agradeci pela escolha. Qual? Essa de ser uma das canetas que a poesia usa para
contar causos. Imagino que ela seja um dos anjos mais travessos que o Pai
possui no seu reino infinito e que Ele morre de rir de suas molecagens, como
quando me acorda de madrugada e me induz a um verso sem ritmo ou a uma rima que
não rima, só para me ver arrancar o resto dos cabelos. Logo em seguida passa a mão
em minha cabeça e segreda em meu ouvido o mais belo poema que jamais escrevi.
Fazemos as pazes, óbvio.
Deus calado e sério, só
ouvindo. Falei do privilégio de viver milhares de vidas, enquanto a maioria das
pessoas vive apenas uma. Disse das viagens, dos milhões de quilômetros que
andei e ando ainda nos múltiplos universos que Ele colocou dentro de mim.
Comentei sobre meus olhos que enxergam sonhos, mesmo que hermeticamente
fechados nas caixas-fortes do pudor e do medo de sonhar. Ele quieto, quase enfadado
com a conversa interminável.
Tantas eram as coisas
que resultavam daquela escolha, que não tinha fim a ladainha de agradecimentos
e pedidos de desculpa, como se, antecipadamente, Ele não os conhecesse todos.
Por fim, levantou-se, dando a entender que o encontro estava terminado, e já ia
partir quando criei coragem e fiz a pergunta que me persegue a vida inteira: Por
que sou daltônico? Deus, para surpresa minha, sorriu carinhosamente, como
fazem os pais diante de perguntas bobas dos filhos pequenos, e respondeu: Ora,
rapazinho, se te fiz poeta não ia deixar que enxergasses cores e perdesses o
meu tempo e o teu tentando ser o mau pintor que, no máximo, serias.
Ainda sorrindo,
elevou-se ao Céu, deixando-me perplexo ante Sua Sabedoria. Por isso é Deus!
*
Poeta e escritor paraense
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