Recife continua invicta
* Por Marco
Albertim
Cena 1 - O seio está quase à mostra
Depois de escrever a reivindicação que mais convém
à musicalidade de seus ouvidos, a moça empunha a cartolina com os dois braços.
Um vento sopra na marquise da esquina da rua Gonçalves Maia; sopra para
desalinhar os curtos e finos cabelos em sua cabeça roliça. No balanço de seu
corpo, o decote do vestido desabre-se sem controle. O seio esquerdo fica quase
à mostra; túrgido, tropical, com o bico tão redondo quanto uma moeda. Parece a
revolucionária da Comuna de Paris; numa mão, a bandeira vermelha; noutra, o
fuzil. Convém não citar seu nome, convém dizer que é tão moça quanto o viço da
União dos Estudantes de Pernambuco. Dois de seus confrades têm na mão um saco
plástico com tubos de tinta em spray.
- Livrem-se disso. A UEP não concorda em sujar as
paredes com tintas no spray.
A censura da militante é tão enérgica que toda a
sua roupa se recompõe, como para dar conta da moral do bulício promissor da
tarde. Os dois moços entreolham-se, não se livram dos tubos de tinta.
Recolhem-se a um canto da marquise, sentam-se na frieza dos canos de ferro que
separam as bombas de gasolina da loja de conveniência.
As cartolinas colorem-se com o calor de demandas
escritas. Uma vintena de estudantes, com bochechas e narizes pintados de verde,
de amarelo, espera o sinal para seguir a multidão, ainda rala à altura das duas
da tarde. No estacionamento do posto, outros cinco moços apeiam-se do Fiat
cinzento. Têm uma sacola com tintas; pintam-se sem esconder o gestual feminino.
A vaidade gay mistura-se aos cartazes com censuras ao deputado Marcos
Feliciano.
A duzentos metros dali, na rua Gonçalves Maia. Uma
patrulha de vinte PMs protege a frente do consulado americano. Três viaturas de
cor negra compõem o cenário. Gays e militantes da UEP não lhes dão atenção. A
patrulha se mantém absorta, prosaica.
Cena 2 - A prenhez da estudante
Às quinze horas a avenida Conde da Boa Vista
esvazia-se de carros, de ônibus. Moços com cartazes, apitos, percorrem-na como
para sorver a ausência do risco de serem atropelados. As lojas, com exceção da
loja do posto, point de moços notívagos, estão com as portas cerradas, muitas
com tapumes. No Derby, a praça está ocupada por milhares de moços. O trânsito
na avenida Agamenon Magalhães é interrompido; dos raros carros, os ocupantes
acenam para a multidão. Ouvem-se, aqui e ali, os estampidos de rojões. Um
motorista desce do ônibus sem a pressão da multidão; não há susto em seu rosto.
A Associação de Praças e Bombeiros monta uma barraca, arrecada donativos para
as vítimas da seca. No meio da ponte, sentados no asfalto, rapazes com cabelos
à moda rastafári, fazem circular de boca em boca a grossa bituca de liamba; o
odor mistura-se à inhaca que sobe da lama do canal. Uma patrulha de quinze PMs
está na esquina da avenida Carlos de Lima Cavalcanti; sobre a farda, num dos
antebraços, portam uma fita branca com uma legenda: PAZ. .Cinco marginais
tentam tomar o celular de uma mulher. Ela grita, chora com desespero no rosto
lívido. Manifestantes, um grupo deles, conseguem agarrar dois dos ladrões e os
entregam à polícia.
Indiferente ao tumulto, a prenhez de seis meses,
exposta, da estudante, exibe em letras vermelhas - Quero uma nova vida. O rosto
e as pernas estão intumescidos, encorpam a multidão que protesta feliz.
Cem mil pessoas arrastam-se lentamente rumo ao
centro do Recife; a avenida lhes pertence. As patrulhas da
Polícia Militar
olham-nos prosaicas, sem indícios de que a força militar é maior que a multidão
na ruas. Uma dezena de militantes do PSTU aproxima-se do primeiro cruzamento da
avenida. Manifestantes apupam-nos. A polícia põe-se no meio, separa-os sem
empurrões. Ouve-se na pouca altura o ruído do helicóptero da Globo. Vaias. Mais
alto, o helicóptero da Polícia Militar monitora o rumo da marcha.
Às 19 horas, também a avenida Guararapes é ocupada.
Na Praça da Independência, a polícia prende ladrões que fazem arrastão; ouve o
aplauso da multidão. Na margem do rio Capibaribe, em frente à Assembleia
Legislativa, a calçada formiga de PMs. Uma rala multidão zumbe na rua da
Aurora. Dali em diante, por toda a noite, vazando a madrugada, todo o gradil de
ferro do Palácio da Justiça enxameia-se com faixas e cartolinas; dir-se-ia uma
noite de novena sem o sussurro de rezas.
Recife dorme convencida de que permanece invicta.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de
Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia.
Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008,
obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do
Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e
“Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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