O fim da meia-entrada
* Por
Guilherme Scalzili
Nos próximos meses, o
poderoso lobby do espetáculo arrancará do Congresso um limite de 40% para os lotes destinados à meia-entrada obrigatória.
Em médio prazo, a mudança terminará causando o extermínio do benefício, pois não há instrumentos precisos para uma aferição externa dos
ingressos vendidos pela metade do valor nominal. Ou alguém contabilizará e
conferirá bilhões de canhotos retidos pelas bilheterias do país, ou deveremos
confiar na palavra dos vendedores. Independente do duvidoso respeito à cota,
porém, a limitação de um direito por demanda empresarial deveria submeter-se a
debate público de mínimas proporções.
De fato, existe muita
fraude na expedição de credenciais estudantis. A disseminação do desconto
esvazia sua própria natureza excepcional, causando prejuízo desmesurado a
parcela minoritária dos espectadores. Os fundamentos educacionais do benefício
foram descaracterizados ao incluir eventos esportivos alheios a esse caráter,
particularmente os jogos de futebol profissional. Seu escopo inclusivo também
perdeu relevância, pois a abrangência a todas as categorias sócio-econômicas
reproduz os privilégios existentes no acesso às instituições de ensino e no
próprio consumo de bens culturais.
Mas esses defeitos
seriam corrigidos de forma bastante satisfatória através de uma consolidação
nacional de regras baseadas em critérios coerentes com os propósitos originais
da idéia. Bastaria enfocar beneficiários de programas sociais, alunos de
escolas públicas e aposentados que recebem as menores faixas de rendimentos.
Talvez até fosse o caso de isentar eventos que já oferecem alguma alternativa
promocional fixa, como os planos de fidelidade que atraem torcedores aos
estádios, incentivando modalidades afins nas outras áreas.
Para retribuir tanta
gentileza, demonstrando a nobreza de suas intenções, os empresários aceitariam
que o mimo incluísse algumas contrapartidas de cunho republicano. As mais
urgentes visariam sanar as cotidianas e impunes violações de direitos do
consumidor praticadas por casas de
espetáculos e bilheterias virtuais. Seria uma ótima chance de moralizar as
infames taxas de “conveniência”, as vendas antecipadas, a superlotação e os atendimentos à clientela por telefone e internet.
Acontece que os
exterminadores de direitos não estão interessados em democratizar o acesso à
cultura ou em consolidar ferramentas básicas de cidadania. E nada evidencia
melhor a ganância e o oportunismo dos seus esforços quanto o principal
argumento usado para demonizar a meia-entrada: o de que os ingressos para
espetáculos realizados no Brasil são exorbitantes (reconhecidamente superiores
às médias encontradas no resto do planeta) por causa da suposta universalização
do benefício.
Qualquer associação
entre a verba das bilheterias e os gastos dos produtores distorce a rotina da
atividade. Eventos de grande apelo midiático desfrutam de patrocínios e
permutas de várias espécies, além das taxas pagas pelos fornecedores de
bebidas, alimentos e serviços. Atrações internacionais costumam cercar-se de
amplo suporte corporativo, exigindo parceiros locais para suprir riscos
financeiros e necessidades logísticas da turnê. Depois que essa engenharia foi
posta em funcionamento, quase tudo que o espectador paga vira lucro, disfarçado
sob diversas rubricas de “remuneração”.
É leviano, portanto, afirmar de antemão que o fim da meia-entrada acarretaria a queda
automática e equivalente dos preços. Sempre haverá inúmeros vilões a culpar, da
famigerada carga tributária aos cachês milionários. E são dados imponderáveis,
resguardados sob exigências contratuais e muitos sigilos estranhos, que
evidenciam os limites da transparência defendida pelos empresários.
Já que a lei não pode incluir exigências quanto ao resultado prático da mudança, a cota de 40% abre caminho para um logro irreversível.
Publicado no Amálgama
*Jornalista, advogado, historiador
e escritor, autor dos livros “O colar da Carol ta na grama”, “A colina da
Providência”, “Pantomima”, “Acrimônia” e “Crisálida”.
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