* Por Marco Albertim
A chuva, de tão grossa, dir-se-ia raivosa; tão raivosa quanto os tempos. Àquela altura da noite, nove horas, nem por isso o trânsito se tornou ralo na Avenida Caxangá. O único benefício, carece dizer, era conversar sem baixar tanto o tom da voz. O ruído do aluvião acumpliciou-se à conversa, ao assunto, visto que o balbucio, inda que mudo, era urdume do tinhoso para cobrir de chamas a paz dos generais.
- Diga ao Partido que eu estou pronto para a guerrilha...
Mirando-se dos pés à cabeça, Venâncio, sem se queixar do par de chinelos estropiados, do algodão chinfrim da camisa, da calça cujo azul dera lugar a um cinzento aquoso, sem nome, julgou-se capaz de pôr na cintura um trabuco qualquer. Passara o dia empunhando a lima, serrilhando para frente e para trás, o vazio quadrado no meio de uma chapa de aço, presa a um torno na beira de uma bancada de madeira. À frente do chefe de corpo magro, barba cheia, óculos de lentes grossas catando declives nos cortes da lima fora do esquadro. Um milímetro a mais em qualquer dos lados, o chefe sentenciaria à morte a peça de aço; o aço e o emprego do ferramenteiro.
Mirando os pés, não evitou a comparação com os sapatos de Albano. Nem os pingos da chuva conseguiram encobrir a simetria, o couro liso, graxento, sob a calça de linho, sem vinco, a retitude obtida sob um ferro de ponta precisa. Não reparou na camisa de Albano; o instinto de se ver em roupa igual ou noutra melhor, daria conta de cobiça pequeno-burguesa; o mesmo que se confessar inapetente para a guerrilha. No entanto, mesmo com o bodum saído do esgoto junto à calçada, sorveu o cheiro da fartura de algodão puro na camisa do parelho.
A chuva continuou, mas tão fina que se permanecessem sob a marquise, um automóvel qualquer, ou seus ocupantes, distinguiria os urdumes de insubordinação nos dois. Os dois saíram cobertos pelo único guarda-chuva, o de Albano. Entraram na rua ao lado da esquina onde se abrigaram; ao fim de seis quarteirões, numa vila de quartos conjugados com fundos para o rio Capibaribe.
- Shangri-La – disse Venâncio.
No único desvão, Venâncio pusera a rede de dormir amarrada aos caibros da coberta de telha. Na parede de seu lado, num banco de madeira igual a um pela-porco em miniatura, as roupas que conseguira trazer de casa, quando escapara ao cerco da polícia. Albano tirou de sua sacola uma rede, instalou-a paralela à de Venâncio. Olhou para as quatro paredes, para o reboco desbotado, caindo os pedaços. Como dirigente, observou:
- Você vive numa moradia abaixo da média do povo; assim fica difícil sua integração com a vizinhança.
- Não tenho como morar num lugar melhor. É o salário.
- Não lhe pagam como profissional?
- Sou novo na profissão; por isso me pagam pouco. Antes de me mudar para uma casa melhor, quero refazer meu guarda-roupa.
Um estalo de arrependimento se mostrou na testa de Venâncio. Refazer o guarda-roupa e ir para a guerrilha! Albano não notou por causa do lume fraco do candeeiro na parede. Ainda assim, aliviou-o:
- O tranco da guerrilha na mata exige roupa resistente.
O resto da noite e a madrugada transcorreram com a chuva fina, com sonoridade fria, de desolação, nas telhas mal juntadas do casario. O rio atrás perdera a piscosidade, com quase nada de perfume fluvial; o marulho remoto mal encobrindo o concerto de rãs, sapos e zumbidos de insetos.
A conversa dos dois tornou-se rala, no ritmo da chuva, da chama mortiça no candeeiro. Dormiram sem se dar boa-noite; a convergência de ideias dispensou-os da praxe mecânica. Vivendo escondido há três anos, Venâncio deixara para trás Maria, com quem não se casara mas se coitando feito velhos amantes. Queria notícias dela; não inquiriu Albano para não ser colhido com suspeitas de hesitação no impulso de tornar-se guerrilheiro. Os dois dormiram sem confessar a suposição de incompletude no juízo de cada um.
Dia seguinte, em pé, Albano perguntou a hora.
- Cinco para as seis.
Venâncio, ato contínuo, ligou o rádio. O locutor confirmou a hora.
- Você tem um relógio na cabeça; é a disciplina do trabalho.
Despediram-se sob a marquise. Acometeu-os a mesma impressão de incompletude. Albano voltou-se súbito:
- Ela está casada comigo...
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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