* Por Mara Narciso
Em filme ou novela mulher feia é aquela de cabelos presos engordurados, franja, óculos pesados, aparelho nos dentes, mal trajada e cara de boba. Também tem atitudes pouco inteligentes, rindo sem motivo, pelo menos no começo, para aos poucos ir mostrando vivacidade. Sua transformação inicial é apenas interior, onde a bondade é ponto chave, para depois acontecer o banho de loja, ocasião em que uma mudança radical se faz necessária. É como se a personagem, para ser valorizada pelo protagonista, precisasse seguir o padrão de beleza x, senão, nada feito. Quase sempre basta ela soltar os cabelos e tirar os óculos para se tornar irresistível. E assim se faz para preencher a expectativa da plateia. Com o coração do mocinho conquistado, o público já fica satisfeito. Então se segue o desenrolar da trama, aceitando-se essa trajetória não só como desejada, mas como a única possível.
Numa sociedade em que se exige da pessoa beleza, juventude e ser dona de certos objetos, o comportamento entra em algum lugar, porém não é no principal. Muitos querem seguir tal script para não perder o bonde, e conseguir ocupar um bom lugar social, ser bem vistos e valorizados. Mas há quem pense diferente. A menina nasceu em berço de ouro com pedras preciosas. Rica, amada, desejada, cortejada por todos, tinha a particularidade da beleza imensa, clássica, indiscutível. Qualquer pessoa que a visse não resistia em falar alto, sem disfarces, que a menina era linda. Em todos os lugares, desde sua casa, à casa de parentes, na família, escola, rua, aonde quer que passasse despertava tais comentários. Nossa, que menina maravilhosa! Que cabelos loiros cacheados encantadores! Que olhos azuis espetaculares! Os adjetivos demonstravam a magnitude da sua beleza, e as exclamações seguiam paralelas aos seus dotes físicos.
Os anos se passaram e então, já entediada com elogios, foi espontâneo o surgimento de aborrecimento e uma cara amarrada. O admirador batia os olhos, escandalizava-se com os encantos da menina e, passando a mão em seus cabelos, soltava a palavra mais forte que conhecia, para demonstrar o quanto a tinha achado linda. Era horrível, gerando desconforto nela e na família. Beleza demais cansa, e as pessoas não tinham como adivinhar, ou suspeitar o quanto era ruim ouvir tais palavras.
Agora já moça, não suportava aquilo. Parecendo um conto de fadas às avessas, encontrou o caminho para dar fim a esse grave incômodo. Ser bonita se destacava de tal forma que não a elogiavam por seus dotes e capacidades. Isso a fez encolher-se, tornar-se insegura, mas não se anulou. Foi seguindo os estudos, mesmo pouco à vontade. Com o tempo, acabou se escondendo daquele passado de beleza, engordando pouco a pouco. Não parecia ser um caminho escolhido a propósito, mas, comendo exageradamente, engordou o suficiente e aí sim, pareceu ter atingido seu objetivo. Quando a obesidade se consumou, especulou-se ter havido uma premeditação.
Então surge outro questionamento dentro da ditadura social: não é possível ser gorda e bela? Sim, mas deixa de ser unanimidade. Esconder-se sob um manto de gordura pensa-se estar protegida. Quando não totalmente, pelo menos de boa parte dos comentários abusivos. E desde que a repetição era o que a aborrecia, o elogio, agora caro, passa a ser suportado. Então surgem outras cobranças. A mulher obesa e bonita, não é mais a menina maravilhosa que a todos encantava. Pode ser feito o caminho de volta, mas, embora possível, não vai acontecer. O disfarce de gorda é mais seguro. O escudo da carapaça obesa é artigo de defesa. Pretende preservar a integridade sexual. Ser bela demais é um risco que poucas conseguem suportar, por incrível que pareça.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/
Ser o que se é, o que se quer ser, o que a sociedade espera que seja. Nada fácil achar um ponto de equilíbrio nesse conflitante dilema - que você, certamente, vivencia também em seu consultório. Ótima reflexão, Mara. Abraços.
ResponderExcluirMarcelo, Inspirei-me mais numa pessoa, e bem poderia ser um único caso real, mas não é. São fragmentos de pessoas sobre os quais introduzo pontos ficcionais. Em geral pego o ponto de partida no consultório e coloco pitadas de exageros. Quando a mulher se torna realmente obesa, monstruosa, as pessoas dizem: um rosto tão bonito, mas é preciso emagrecer. Isso as chateia ao ponto de briga. Ficam loucas de raiva, emburradas, e isso as faz ficar ainda mais gordas. Tenho alguns casos assim, embora não tão lindas. Você falou muito referindo-se ao "conflitante dilema". Obrigada pela interação.
ExcluirDia desses vi uma entrevista da Bruna Linzmeyer
ResponderExcluiruma atriz belíssima, ele falava do desconforto
que sentia ao ser elogiada pelos seus dotes físicos
e dos olhos lindos...ao ser perguntada sobre o motivo de não gostar desse tipo de elogio, ela apenas disse que era cansativo, chato, repetitivo.
Imagina então a cobrança em cima das menos favorecidas de beleza, é de dar nó em pingo d'água!
Abração Mara
Bem lembrado, Núbia. Os horripilantes não têm escapatória. Com o passar do tempo a feiura fica ainda mais evidente. Obrigada por trazer mais essa reflexão.
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