* Por Marco Albertim
O tiuí não soltou o canto inteiro. O dia se mostrara com uma claridade bacenta. As costas do tiuí, ainda frias, não enrijeceram com o chilro rouco. Iná ouviu e conveio não abrir os olhos de vez; puxou o lençol mais para cima, cobrindo a lanugem fina do pescoço liso. A janela pequena, acima dois metros de sua cama, mantivera-se com um dos lados aberto; para dar conta do canto inteiro do tiuí, das promessas do dia. Com pouco a claridade incidiu no lençol, e o tiuí fez-se inteiro na palha verdosa do coqueiro, da altura da cumeeira da casa.
Ela levantou-se bocejando. Antes de tirar a camisola de abanhado comprido, pressionou-a na barriga e entreviu só a transparência do pano na sua pele sem lustro àquela hora. Deixou aberta a porta do quarto; nos fundos da casa, sob o telhado nu, acomodado em caibros e ripas ainda com o viço de madeira nova; o ar, ali, fundia o cheiro de terra nas roupas de Iná. Ela viciara-se na fruição do miasma, e deixava aberto o tampo de sua mala de roupas para sentir a macieza da calcinha soprada pelo vento.
Na cozinha, acendeu o fogão e esperou a água ferver no bule de alumínio. Acomodou na mesa a bandeja de pães, o pote de manteiga. Ao lado do bule, na frigideira, os ovos mexidos se encorparam sobre a quentura do fogo. O cheiro misturou-se ao pó do café espremido no pano retorcido por suas mãos. Não demorou, a cabeceira da mesa foi ocupada por dona Brígida; de seu lado, Virgílio sentou-se com os olhos nos ovos mexidos por Iná. Não a vira no manuseio da colher-de-pau, inda que imaginando um balé no punho feminino sobre as panelas.
- Senta pra comer, Iná – assentiu dona Brígida.
Não era a última, Iná, a comer a refeição. Desde que dona Brígida enviuvara, insinuara-se com submissão de um cão dócil, reservando-se numa cadeira no lado oposto ao de Virgílio. Sentou tendo o cuidado de curvar-se sobre a mesa, para dar conta do torso coberto pelo vestido fino, sem transparência, e proteger o ventre de inquirições mudas.
- Usa outro vestido, Iná. Hoje nós vamos pra missa... – advertiu-a dona Brígida.
Não disse sim nem não, Iná. Mas não conseguiu evitar o efeito do que ouvira também nos olhos incertos de Virgílio.
- Não vai pra missa, Virgílio?
- Não.
O rapaz ainda não adquirira prumo nos joelhos para os ritos da igreja; trancar-se-ia no quarto, ajuizando-se entre as moças da mesma rua, e curioso para os segredos guardados na mala de Iná.
Iná cobriu-se de um morim grosso, encorpado. Dona Brígida, o mesmo vestido preto de quando enviuvara; nos ombros, um véu tão negro quanto lustroso à luz incidente da manhã. Entraram na igreja a tempo de ocupar um lugar na fila do confessionário. A velha não tinha pecados, inda que com sustos decorrentes de noites insones por dar-se conta da viuvez com sobressaltos na cama. Foi a primeira a se ajoelhar para destilar uma fieira de apreensões. O padre, pároco de meia dúzia de ruas com casas cujas moradoras se acreditavam perdoadas de indistintas culpas; as culpas, tinham-nas como num viveiro. Padre Bonaldo, fornido do guisado untuoso de alguma cozinha, zelava-lhes o juízo com balbucios e o sinal da cruz; com a doença de Alzheimer se insinuando, troc ava o uso da mão direita pela esquerda.
O sussurro de dona Brígida, sem bulício nas pálpebras quase sem cílios, dava vida a pinturas de ícones nas paredes; desenhos antigos, desbotados, bocas tortas de preces lamentosas. A velha, sabendo ou não, no papel de ventríloquo de cada uma das silhuetas.
- Tenho medo de meu filho... – disse.
- Medo por quê?
- Ele é puro. E agora tem uma moça em casa que pode ser a tentação do demônio.
- O demônio não pode com Deus.
- Não pode mas meu filho é moço...
O padre olhou para o relógio no pulso.
- Ela vai se confessar – disse ela antes de se pôr em pé.
Iná ajoelhou-se e notou que a velha, mesmo fazendo o sinal da cruz, não despregou o olho de como ela, Iná, balbuciaria as inquietações de moça no confessionário. Não tinha relógio, dona Brígida; parou de rezar para contar os minutos no relógio de parede da sacristia. Iná demorou. Dona Brígida espreitou uma ruma de culpas saindo dos beiços finos de Iná. Iná foi a última a pungir-se das imprecações punitivas do padre. Levantou-se com a cabeça baixa. O padre, com a ajuda do coroinha, pôs o manto sobre a estola. Seguiu para o altar, cruzando a porta ao lado do altar da sacristia. Olhou para dona Brígida, a modo de confirmação das suspeitas. O coroinha balançou o turíbulo de um lado e de outro, atrás do sacerdote. Um véu cinzento de fum aça cobriu o rosto de Iná. A velha benzeu-se.
As duas comungaram juntas, ajoelhadas, sob o olhar de agouro do pároco.
No final, não se deu por satisfeita. Logo que o padre se viu livre da estola, da alva, convidou-o:
- Venha almoçar na minha casa. Iná vai fazer guisado de carneiro.
- Iná sabe cozinhar?
- Sabe!
- Já era tempo...
- Já era tempo de quê, padre Bonaldo?
- De aprender a cozinhar, ora...
Iná teve tempo só de repor o vestido da manhã, fino, sem transparência. O cheiro do guisado se fez sentir ao meio-dia. Padre Bonaldo sentiu-o já na soleira da casa. Sentou-se na cabeceira da mesa, curvado aos rapapés de dona Brígida. Iná, em pé, sorrindo contrafeita; sentou-se sob o rogo mudo da patroa. O padre olhando-a sob a lente grossa dos óculos. As desconfianças de dona Brígida untaram-se de gordura sob os olhos de volúpia do padre, passeando entre as porções do carneiro e o acanhamento de Iná.
Virgílio, calado, como para fazer segredo dos vinte anos de vida como filho temporão.
A despedida de padre Bonaldo não teve confissões; não carecia, posto que seus olhos não tinham a propriedade do silêncio.
A tarde deslizou preguiçosa, acudindo a precisão de cada um tornar-se recluso de si mesmo, mudos nos aposentos. À noite, a velha não evitou o costume de se evadir da viuvez na escuridão do sono. Iná deixara a porta do quarto entreaberta, a porta e a janela na parede dos fundos. Logo o tiuí a reporia no prumo dos sentidos. A mala de roupas aberta, sorvendo o perfume de seu corpo familiarizado com o estreito aposento. Virgílio, nutrindo-se do mesmo frescor, segurou-a na mão. Sentiu prazer, ela, no tremor da mão; o tremor desceu para o resto do corpo. Os dois tremeram no frio dos corpos nus. Ela gemeu como se estivesse ouvindo uma lira, sentindo o jorro quente do parelho em suas entranhas.
Não demorou e o ventre de Iná cresceu, ficou tão bojudo quanto a fêmea do tiuí na palha do coqueiro. Acordando, com a mão na prenhez, creu-se mais que criatura, tão choca quanto a parelha do tiuí.
Dona Brígida, zelosa da memória do marido, mantinha o tempero da comida que preparara antes de se ver matrona. Padre Bonaldo voltou ao repasto da viúva, prelibando na soleira da porta a liturgia da carne guisada. Impossível não dirigir a palavra a Iná, cujo ventre abaulado disputava espaço com as bochechas intumescidas; as pernas, não carecia de apreciá-las, visto que a inchação deixara de ser um regalo para os olhos.
- Deus tudo consente; ele sabe atar e é preciso se resignar quando ele decide desatar – disse o padre, convicto de que o acanhamento de Iná era indício da autoridade divina.
- Ela tem o confessionário, padre. Vai saber como reparar o seu erro. – completou dona Brígida.
O parto ocorreu dois meses depois. Iná sentiu dores, gritou como uma aflita. O curumi nasceu com bochechas largas, a mesma cor azevichada da mãe. Aplicaram-lhe uma injeção. Ela dormiu. Na cama onde emprenhara de Virgílio, viu o casal de tiuí com dois filhotes na palha do coqueiro. Sem mexer com as pernas, procurou o filho para aliviar o peito da tumescência leitosa. Não encontrou uma boca, não ouviu o grunhido de fome...
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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