segunda-feira, 9 de abril de 2012







Sobre a velhice

* Por Rubem Costa

Obviamente, falar sobre a velhice não é ideia que atrai os jovens. Uma questão de anseios lastreados na idade. Divertiu-me, outro dia, ouvir uma veneranda senhora reclamar contra mocidade de hoje. Entanto, para minha surpresa, era a mesma voz que, há vinte anos, gritou-me ao volante, acompanhada de estridente buzina — “se toca, coroa” — simplesmente porque, eu ia à sua frente, dirigindo moderadamente meu carro. A pessoa era a mesma, mas a idade era outra.

Eis aí, no conflito do novo e do velho, a senectude. Tema antigo, atual e moderno que instiga o homem na maturidade a rever a própria imagem. Convite para uma manifestação sobre si mesmo, capaz de valorizar a existência ou degradá-la como ser vivente. Dizer assim, não representa um quiproquó de linguagem, nem tão pouco um paradoxo. Envelhecer é evolução, afirmação de movimento, transformação que está na essência das coisas, desde a invenção do mundo. Mudança. Só existe noite porque o dia envelhece e só existe aurora porque o dia é fênix que renasce das próprias cinzas para dimensionar os rumos da eternidade.

Assim, velhice é uma tese que mergulha no mistério da origem e não se esgota como fim. E criar, qualquer dicionário ensina, representa semanticamente retirar do nada, subtrair do vazio. Aí reside a razão de os dicionários dizerem que — existir — é palavra que não se define. Vive-se. Conceito que, cuidando satírico da idade, nos empurra às encostas do tempo imóvel que ri mordaz da confusão, visto que, enquanto pensamos que está passando por nós, somos nós que por ele transitamos.

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Releio um livro escrito há mais de dois mil anos — Diálogo Sobre a Velhice. Uma obra que não se exaure e atravessa as eras porque, celebrando a vida, fala do ser na hora em que o sol da existência declina. Livro antigo, referto de emoções perenes, Escrito por Marco Túlio Cícero, grande orador da antiguidade clássica que no senado romano, denunciando a corrupção da política e a falência da dignidade humana, deflagrou a célebre proclamação que a história guardou, mas os homens esqueceram — “Ó tempora, ó mores” — Ó tempos, ó costumes. Como eu disse. Tema antigo, atual e moderno.

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Na percepção íntima do viver, Cícero coloca o homem diante de um espelho para visão interior de si mesmo, oferecendo-lhe a oportunidade de descobrir a própria imagem na travessia da existência. Momento de escolha: valorizar-se como ser presente até o fim da caminhada pela ponte da vida ou degradar-se na saudade dos dias festivos, choramingando o passado que nada mais constrói. Para exemplificar, o velho tribuno enumera dois episódios em conflito.

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Conta primeiro a história do atleta mais célebre da antiguidade: Milon de Crotona. Campeão olímpico, competidor imbatível em todas modalidades de força física, suas façanhas foram cantadas por Aristóteles, Pausânias, Heródoto e outros grandes pensadores da velha Grécia. Entre as peripécias, diziam mesmo que o seu comum divertimento era transitar carregando um touro às costas nos dias de competição. Mas como tudo passa e a vida rola, a força também entardece. E no último dos jogos, olhando os braços flácidos, que já não mais erguiam sequer um cabrito, sentiu-se vencido e chorou amargurado no meio da arena, amaldiçoando a vida, clamando contra os deuses por lhe terem tirado o vigor dos músculos.

Diante da insânia, Cícero inventiva a Milon, chamando-o de desprezível por se declarar derrotado, sem ânimo de procurar outra forma de glorificar a existência.

Em contrapartida, engrandecendo a vida, traz à lembrança a figura épica de Sófocles, escritor que viveu há quatro séculos antes de Cristo e foi o maior dos trágicos da cultura helênica. Conta que, desafiando a acusação de demência senil que lhe imputavam parentes ávidos de sua fortuna, aos 80 anos de idade, o poeta apresenta-se altaneiro junto ao severo tribunal ateniense onde, deslumbrando os atônitos juízes, como prova de sua lucidez, oferece à leitura uma das mais importantes obras literárias da antiguidade, o Édipo em Colona que acabara de escrever.

* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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