Saturday night fever
* Por Daniel Santos
Há cerca de duas semanas, perdi um grande amigo, um desses que nunca negam solidariedade e, após exaustivas buscas, além de sonhos recorrentes com a sua volta, não tenho mais esperança de reavê-lo.
O gato chamava-se “Travolta”, era amarelo, gordo, amoroso, inteligente e felpudo como uma estola, ou assim me parecia durante o sono circular, quando se enrodilhava em si mesmo, sem começo nem fim.
Durante 10 anos ou pouco mais, ele se escarrapachou sob a mesa da sala, enquanto eu escrevia madrugada adentro até o sol corroer a sutil sintonia que nos mantinha silentes, em profunda comunhão de espíritos.
Mas, acabou. E, tanto quanto pude me informar, seu destino foi a panela de gente que aluga quartos nos decadentes casarões desta parte antiga do centro da cidade. Gente do campo, da periferia – caçadores!
Não são famélicos de jeito nenhum, nem criaturas perversas, mas uma espécie que eu desconhecia: vivem da caça noturna em plena cidade, apesar da enorme oferta de alimentos nos mercados das redondezas.
Ratos e gambás não lhes escapam; muito menos, gatos – ainda mais o meu, bem nutrido, manso, bobo, que se aproximava sem suspeitas de quem o chamasse para uns afagos, sempre feliz, de rabo em pé.
Criado num ambiente harmônico que ele ajudou a instalar, não podia supor o perigo logo ao lado e, apesar de raras vezes incursionar até a rua, lá desapareceu; vítima, na certa, de alguma habilidosa cilada.
Às vezes, manhã cedinho, avisto da janela alguns desses caçadores indo para o trabalho. São gente de aparência decente e confiável, camisas bem passadas, tagarelas e alegres, mas sempre no limite da discrição.
Não fossem discretos e alardeassem seus hábitos alimentares, na certa sofreriam algum tipo de pressão. Assim, quietos, não deixam pistas, o que torna cada um deles ainda mais sinistro, do meu ponto de vista.
Imagino vinganças que amedrontariam o próprio Calígula mas nada farei, que não me permito. Restam a dor irremediável e a descoberta, o repentino espanto: “Travolta” desapareceu numa noite de sábado!
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
* Por Daniel Santos
Há cerca de duas semanas, perdi um grande amigo, um desses que nunca negam solidariedade e, após exaustivas buscas, além de sonhos recorrentes com a sua volta, não tenho mais esperança de reavê-lo.
O gato chamava-se “Travolta”, era amarelo, gordo, amoroso, inteligente e felpudo como uma estola, ou assim me parecia durante o sono circular, quando se enrodilhava em si mesmo, sem começo nem fim.
Durante 10 anos ou pouco mais, ele se escarrapachou sob a mesa da sala, enquanto eu escrevia madrugada adentro até o sol corroer a sutil sintonia que nos mantinha silentes, em profunda comunhão de espíritos.
Mas, acabou. E, tanto quanto pude me informar, seu destino foi a panela de gente que aluga quartos nos decadentes casarões desta parte antiga do centro da cidade. Gente do campo, da periferia – caçadores!
Não são famélicos de jeito nenhum, nem criaturas perversas, mas uma espécie que eu desconhecia: vivem da caça noturna em plena cidade, apesar da enorme oferta de alimentos nos mercados das redondezas.
Ratos e gambás não lhes escapam; muito menos, gatos – ainda mais o meu, bem nutrido, manso, bobo, que se aproximava sem suspeitas de quem o chamasse para uns afagos, sempre feliz, de rabo em pé.
Criado num ambiente harmônico que ele ajudou a instalar, não podia supor o perigo logo ao lado e, apesar de raras vezes incursionar até a rua, lá desapareceu; vítima, na certa, de alguma habilidosa cilada.
Às vezes, manhã cedinho, avisto da janela alguns desses caçadores indo para o trabalho. São gente de aparência decente e confiável, camisas bem passadas, tagarelas e alegres, mas sempre no limite da discrição.
Não fossem discretos e alardeassem seus hábitos alimentares, na certa sofreriam algum tipo de pressão. Assim, quietos, não deixam pistas, o que torna cada um deles ainda mais sinistro, do meu ponto de vista.
Imagino vinganças que amedrontariam o próprio Calígula mas nada farei, que não me permito. Restam a dor irremediável e a descoberta, o repentino espanto: “Travolta” desapareceu numa noite de sábado!
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
Ai que tristeza, Daniel. Estranhos hábitos, mas, ainda que com dor, pelo menos ficou sabendo o fim de Travolta.
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