domingo, 15 de abril de 2012







Saturday night fever

* Por Daniel Santos


Há cerca de duas semanas, perdi um grande amigo, um desses que nunca negam solidariedade e, após exaustivas buscas, além de sonhos recorrentes com a sua volta, não tenho mais esperança de reavê-lo.

O gato chamava-se “Travolta”, era amarelo, gordo, amoroso, inteligente e felpudo como uma estola, ou assim me parecia durante o sono circular, quando se enrodilhava em si mesmo, sem começo nem fim.

Durante 10 anos ou pouco mais, ele se escarrapachou sob a mesa da sala, enquanto eu escrevia madrugada adentro até o sol corroer a sutil sintonia que nos mantinha silentes, em profunda comunhão de espíritos.

Mas, acabou. E, tanto quanto pude me informar, seu destino foi a panela de gente que aluga quartos nos decadentes casarões desta parte antiga do centro da cidade. Gente do campo, da periferia – caçadores!

Não são famélicos de jeito nenhum, nem criaturas perversas, mas uma espécie que eu desconhecia: vivem da caça noturna em plena cidade, apesar da enorme oferta de alimentos nos mercados das redondezas.

Ratos e gambás não lhes escapam; muito menos, gatos – ainda mais o meu, bem nutrido, manso, bobo, que se aproximava sem suspeitas de quem o chamasse para uns afagos, sempre feliz, de rabo em pé.

Criado num ambiente harmônico que ele ajudou a instalar, não podia supor o perigo logo ao lado e, apesar de raras vezes incursionar até a rua, lá desapareceu; vítima, na certa, de alguma habilidosa cilada.

Às vezes, manhã cedinho, avisto da janela alguns desses caçadores indo para o trabalho. São gente de aparência decente e confiável, camisas bem passadas, tagarelas e alegres, mas sempre no limite da discrição.

Não fossem discretos e alardeassem seus hábitos alimentares, na certa sofreriam algum tipo de pressão. Assim, quietos, não deixam pistas, o que torna cada um deles ainda mais sinistro, do meu ponto de vista.

Imagino vinganças que amedrontariam o próprio Calígula mas nada farei, que não me permito. Restam a dor irremediável e a descoberta, o repentino espanto: “Travolta” desapareceu numa noite de sábado!

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. Ai que tristeza, Daniel. Estranhos hábitos, mas, ainda que com dor, pelo menos ficou sabendo o fim de Travolta.

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