Espectros de Glauber
* Por Anna Lee
Os espectros de Glauber Rocha andam a me assombrar. Tal qual os espectros de Marx um dia fizeram com Derrida. Espectros. Sim. No plural. Mais de um. Vários e múltiplos.
Para explicar a pluralidade espectral de Marx, Derrida construiu (no caso dele, Derrida, talvez seja melhor dizer “desconstruiu”) uma longa, brilhante e contundente explanação.
Logicamente, não tenho a mesma competência construtiva – e muito menos desconstrutiva – para agir de forma semelhante em relação a Glauber. Porém, tenho a sorte de ele ter carregado sempre estampada, na cara e no corpo, a pluralidade de animal político, cinematográfico, faminto e sonhador que foi.
Fecho os olhos e vejo. Vejo e escuto. Uma grande concentração tumultuosa de camponeses, com Felício, homem do povo, e sua mulher à frente.
O governador Vieira chega ao local acompanhado de seus assistentes Paulo e Aldo, seguranças e policias. Felício adianta-se, o povo é cercado pela polícia.
Felício: É que nossa família chegou nessas terras já tem mais de vinte anos e a gente lavrou a terra, plantou nela e as mulheres da gente pariram nessas terras. Agora a gente não pode deixar as terras só porque apareceram uns donos não sei da onde trazendo um papel do cartório e dizendo que as terras são deles... É isso que eu queria dizer, seu doutor ... A gente acredita no sinhô, mas se a Justiça decidir que a gente deve deixar as terras, a gente morre, mas num deixa não!
Paulo: Se acalme, Felício, respeite o Governador.
Felício: Doutor, o sinhô... Eu confio no sinhô, mas a gente tem de gritar...
Paulo: Gritar com quê?
Felício: Gritar com que sobrar da gente, com os ossos...
Paulo: Cale a boca, você e sua gente não sabem nada!
Felício: Doutor Paulo, o sinhô era meu amigo, o sinhô me prometia...
Paulo: Nunca lhe prometi nada!
Felício: Eu num sou mentiroso!
Paulo: É um miserável, fraco, falador, covarde!
Felício: Doutor Paulo!
Paulo agride Felício, derruba-o no chão. O povo se agita e é contido pela polícia.
Paulo: Tá vendo como você não vale nada? E vocês também! Todos pra casa, já! Todos!
Essa é uma cena de Terra em Transe, que acaba de sair em DVD, numa versão restaurada que incluiu uma entrevista de Glauber Rocha:
“Terra em transe é a história do Jango, do Arraes, do Lacerda... A história do janguismo no Brasil contada num país da América Latina e mostrando o óbvio que era a colonização, a luta de classes, o racismo, o subdesenvolvimento, o marginalismo; desmistificando o povo, desidealizando o proletariado, que tinha sido romantizado pelo socialismo (...)”.
“O janguismo permitiu uma arte revolucionária. João Goulart tinha um programa de reforma agrária, reforma urbana, reformas econômicas que abriam as vias do socialismo no Brasil. Por isso o Jango caiu. Porque o Brasil ia para o socialismo em 10 anos com os militares que podiam apoiar exatamente esse esquema (...)”.
Jango caiu em 1964. Veio a Ditadura. Anos de Chumbo. Em 1985, o processo de abertura. Tancredo Neves morreu. Sarney assumiu. Fernando Collor sofreu impeachment. Itamar Franco de vice passou a presidente da República. Veio, então, Fernando Henrique Cardoso. Gostou e ficou, quatro anos e mais quatro. Em 1º de janeiro de 2003, quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Planalto, o povo achou que, finalmente, estava no poder.
Mas não foi bem assim. E acho desnecessário me alongar aqui em exemplificações. Quem tiver dúvida que olhe em volta. Nem vai precisar esticar muito a vista.
Na terça-feira, 6/6/06 – que formava o número da Besta do Apocalipse, há que se sublinhar –, o MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra), sob a liderança de Bruno Maranhão, petista, velho conhecido de Lula, invadiu o Congresso Nacional. O MLST, assim como MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), quer a reforma agrária. Uma reivindicação legítima já que se trata de uma promessa formal de Lula durante a campanha presidencial. Legítima, se o protesto não tivesse se tornado um ato de vandalismo estúpido.
“A invasão durou pouco mais de uma hora. O grupo de sem-terra entrou em confronto com a segurança da Câmara e com a Polícia Militar, chegou a virar um carro e causou depredação por onde passou. Pelo menos 41 pessoas ficaram feridas. Um segurança ficou em estado grave. Após o conflito, 549 integrantes do movimento foram detidos”, noticiaram os jornais do dia seguinte.
O povo do Transe de Glauber, tendo Felício à frente, queria gritar com que sobrasse da gente, com os ossos... Os sem-terra do Movimento de Libertação, sob o comando de Maranhão, querem que a “revolução socialista” venha, “seja através de formas de luta que confrontam diretamente o poder dos grandes proprietários rurais e o governo federal, como ocupações de terra e dos prédios públicos, seja através da organização de cooperativas de produção ou empresas agrícolas comunitárias”.
O Terra em Transe não foi capaz de excitar as massas à revolução legítima e não estúpida. O MLST encontrou na baderna uma forma de clamar por terra. Do Planalto, assim como o Paulo glauberiano, Lula grita ao povo: Nunca lhe prometi nada!
Não é a toa que os espectros de Glauber, vários e múltiplos, estão rondando por aí. Feche os olhos, abra os ouvidos, preste atenção e veja como é possível escutá-los.
*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
* Por Anna Lee
Os espectros de Glauber Rocha andam a me assombrar. Tal qual os espectros de Marx um dia fizeram com Derrida. Espectros. Sim. No plural. Mais de um. Vários e múltiplos.
Para explicar a pluralidade espectral de Marx, Derrida construiu (no caso dele, Derrida, talvez seja melhor dizer “desconstruiu”) uma longa, brilhante e contundente explanação.
Logicamente, não tenho a mesma competência construtiva – e muito menos desconstrutiva – para agir de forma semelhante em relação a Glauber. Porém, tenho a sorte de ele ter carregado sempre estampada, na cara e no corpo, a pluralidade de animal político, cinematográfico, faminto e sonhador que foi.
Fecho os olhos e vejo. Vejo e escuto. Uma grande concentração tumultuosa de camponeses, com Felício, homem do povo, e sua mulher à frente.
O governador Vieira chega ao local acompanhado de seus assistentes Paulo e Aldo, seguranças e policias. Felício adianta-se, o povo é cercado pela polícia.
Felício: É que nossa família chegou nessas terras já tem mais de vinte anos e a gente lavrou a terra, plantou nela e as mulheres da gente pariram nessas terras. Agora a gente não pode deixar as terras só porque apareceram uns donos não sei da onde trazendo um papel do cartório e dizendo que as terras são deles... É isso que eu queria dizer, seu doutor ... A gente acredita no sinhô, mas se a Justiça decidir que a gente deve deixar as terras, a gente morre, mas num deixa não!
Paulo: Se acalme, Felício, respeite o Governador.
Felício: Doutor, o sinhô... Eu confio no sinhô, mas a gente tem de gritar...
Paulo: Gritar com quê?
Felício: Gritar com que sobrar da gente, com os ossos...
Paulo: Cale a boca, você e sua gente não sabem nada!
Felício: Doutor Paulo, o sinhô era meu amigo, o sinhô me prometia...
Paulo: Nunca lhe prometi nada!
Felício: Eu num sou mentiroso!
Paulo: É um miserável, fraco, falador, covarde!
Felício: Doutor Paulo!
Paulo agride Felício, derruba-o no chão. O povo se agita e é contido pela polícia.
Paulo: Tá vendo como você não vale nada? E vocês também! Todos pra casa, já! Todos!
Essa é uma cena de Terra em Transe, que acaba de sair em DVD, numa versão restaurada que incluiu uma entrevista de Glauber Rocha:
“Terra em transe é a história do Jango, do Arraes, do Lacerda... A história do janguismo no Brasil contada num país da América Latina e mostrando o óbvio que era a colonização, a luta de classes, o racismo, o subdesenvolvimento, o marginalismo; desmistificando o povo, desidealizando o proletariado, que tinha sido romantizado pelo socialismo (...)”.
“O janguismo permitiu uma arte revolucionária. João Goulart tinha um programa de reforma agrária, reforma urbana, reformas econômicas que abriam as vias do socialismo no Brasil. Por isso o Jango caiu. Porque o Brasil ia para o socialismo em 10 anos com os militares que podiam apoiar exatamente esse esquema (...)”.
Jango caiu em 1964. Veio a Ditadura. Anos de Chumbo. Em 1985, o processo de abertura. Tancredo Neves morreu. Sarney assumiu. Fernando Collor sofreu impeachment. Itamar Franco de vice passou a presidente da República. Veio, então, Fernando Henrique Cardoso. Gostou e ficou, quatro anos e mais quatro. Em 1º de janeiro de 2003, quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Planalto, o povo achou que, finalmente, estava no poder.
Mas não foi bem assim. E acho desnecessário me alongar aqui em exemplificações. Quem tiver dúvida que olhe em volta. Nem vai precisar esticar muito a vista.
Na terça-feira, 6/6/06 – que formava o número da Besta do Apocalipse, há que se sublinhar –, o MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra), sob a liderança de Bruno Maranhão, petista, velho conhecido de Lula, invadiu o Congresso Nacional. O MLST, assim como MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), quer a reforma agrária. Uma reivindicação legítima já que se trata de uma promessa formal de Lula durante a campanha presidencial. Legítima, se o protesto não tivesse se tornado um ato de vandalismo estúpido.
“A invasão durou pouco mais de uma hora. O grupo de sem-terra entrou em confronto com a segurança da Câmara e com a Polícia Militar, chegou a virar um carro e causou depredação por onde passou. Pelo menos 41 pessoas ficaram feridas. Um segurança ficou em estado grave. Após o conflito, 549 integrantes do movimento foram detidos”, noticiaram os jornais do dia seguinte.
O povo do Transe de Glauber, tendo Felício à frente, queria gritar com que sobrasse da gente, com os ossos... Os sem-terra do Movimento de Libertação, sob o comando de Maranhão, querem que a “revolução socialista” venha, “seja através de formas de luta que confrontam diretamente o poder dos grandes proprietários rurais e o governo federal, como ocupações de terra e dos prédios públicos, seja através da organização de cooperativas de produção ou empresas agrícolas comunitárias”.
O Terra em Transe não foi capaz de excitar as massas à revolução legítima e não estúpida. O MLST encontrou na baderna uma forma de clamar por terra. Do Planalto, assim como o Paulo glauberiano, Lula grita ao povo: Nunca lhe prometi nada!
Não é a toa que os espectros de Glauber, vários e múltiplos, estão rondando por aí. Feche os olhos, abra os ouvidos, preste atenção e veja como é possível escutá-los.
*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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