Simples assim
* Por Laís de Castro
Permanentemente fechada, uma
casa morta, fria e sombria como um começo de noite invernoso, as
formigas demarcando seus carreiros, as larvas esculpindo seus túneis
de torrões em obra de arte inusitada, as paredes por um fio. Quem
viveu ali já teve o fio rompido, já se viu centenas destas casas,
já se ouviu centenas desses casos, as moradas duram mais que os
moradores, na ausência da segunda geração vão se perdendo os
pantins, as marquesas, as comadres de porcelana, os séqüitos de
gigantescos talheres de prata ou alpaca, haja boca, as bocas pareciam
ser enormes, então. Vão se perdendo as vozes que por ali ecoavam e
hoje buscam saída entre as telhas redondas e limosas, desarrumadas,
as vozes e as telhas, pelo vento, pelo escorrer de águas e lágrimas,
num fatal e seqüente pudor da existência.
O precioso pinho de Riga
escondido sob camadas e camadas de tinta azuis, verdes e marrons,
repintadas e sucessivas, como se sucederam os dias mornos e
monótonos, apenas incrustados no calendário, como se fosse
obrigatório vivê-los, as portas inventando cada vez uma cor para
saciar os olhos mal-focados, ter assunto, as paredes caiadas, que as
quisemos sempre alvíssimas, como quisemos o Sagrado Coração de
Jesus na sala principal, condenado ad
eternum à corrosão
por traças.
Os passos trôpegos, as noites
negras mal-dormidas, as tosses brancas, como as paredes, lívidas.
Eles se despediram velhinhos,
marido, mulher e cunhada concentrados em acertar o ponto e lamber os
doces da laranja-amarga que viçava no quintal. Ainda vive a
laranjeira, irrelevâncias à parte, sentiu o abandono e deixou secar
seus galhos, enferrujar suas folhas, diminuir os frutos que pairam
pendurados como velhas bandeirolas desbotadas de festas juninas
findas, à espera de que alguém os colha e os transforme num doce,
mesmo que seja para ser lambido por desdentadas e corroídas bocas,
melhor que ser inútil tomara que de um destes frutos nasça uma nova
laranjeira. O fio tênue da vida então se reforçaria, os velhos
ressuscitariam e voltariam no tempo. Só o gesto de pousar o olhar
sobre a laranjeira menina lhes concederia alguns anos a mais e uma
laranja, uma ao menos, seria degustada como o manjar da vida, a
sobrevivência da espécie, a série de eventos que a natureza
programa e fatalmente cumpre, como uma bola de neve que rola montanha
abaixo porque tem em seu destino este rolar e o obedece como dele
escrava, simples assim.
*
Jornalista e editora, foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida
Executiva da Dieta Já da Editora Símbolo. É autora do livro “Um
velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário