Um
dia de treino, o peixe podre no aeroporto e um lugar chamado Brasil
* Por
Márcia Savino
Você
vai pra academia. Vai pro treino, como se diz. Treinar, alcançar
coisas novas, novos limites. Mas antes você faz um aquecimentozinho.
Aliás, como o cardiologista lembrou, precisa treinar aeróbico
também. Então você vai pra esteira, vai ficar uns minutos a mais.
Você fica. Esqueceu o fone de ouvido ao sair correndo de casa, mas
são só vinte minutinhos hoje. Porque o que você quer, é pegar
peso.
As
TVs estão ligadas sem som. Você não consegue não ler
a legenda do canal de notícias ininterruptas que tem um slogan igual
ao da emissora líder, mas como igual não pode ser, então o slogan
é um pouco menos igual e você conclui que o slogan é realmente
sofrível. “Quem terá escrito essa bosta, com aquela vírgula?”,
você pensa quase em voz alta. E você se lembra, e pensa a respeito
do slogan da emissora líder, e conclui que ele “é bom, mas não
chega a ser perfeito”, enquanto aumenta a velocidade da esteira.
Ao
seu lado, uma morena de boné – não, de viseira – e corpo
curvilíneo está correndo forte há mais de dez minutos. Você olha
discretamente para o lado, como quem quer alcançar com o olho a tela
do outro aparelho de TV exibindo uma programação clássica de
atletas ao ar livre enfrentando as mais altas ondas do planeta, mas o
ângulo não lhe é favorável. Restam-lhe as notícias, enquanto
você se esforça para cumprir o trato com o cardiologista. De
relance, você capta um dado no monitor da esteira da morena. Ela
corre na velocidade 9.5. Um dia você chega lá, ainda que esse dia
não pareça, remotamente, próximo.
Aí
você lê uma notícia que você pensa que não está lendo. A
esteira atingiu – pra você – velocidade de cruzeiro para uma
caminhada: 6.5. “Ibama descarta 10 toneladas de peixe podre mantido
por 5 anos no Aeroporto de Guarulhos”. Você olha pro outro lado,
não queria ter lido aquilo. Desse lado a parede é espelhada e você
vê tudo ao mesmo tempo: a morena que corre, os monitores de TV, a
notícia cuja legenda permanece lá, o repórter explicando algo que
você não ouve mas entende. Como pode uma carga de peixe podre ficar
5 anos armazenada? Esse é o pensamento que você não quer que
invada a sua cabeça, você não quer pensar nisso, nessa loucura que
é ser brasileiro, não quer imaginar as explicações das
autoridades que estão ali – você pensa – apenas defendendo o
polpudo salário que certamente arrematam.
Então
você finge que não é contigo. Não é tão difícil, isso. Foca na
esteira. A morena corre, você também já vai decolar, vai dar um
tiro de 5 minutos, sem paciência para peixe podre, sem paciência
para armazenamento de carga perecível por 5 anos, sem paciência
para o rótulo de “Brasil é assim mesmo”, você está prestes a
aumentar a velocidade da esteira quando a morena ao seu lado faz um
comentário banal, mas é sobre o peixe. “Como é que pode isso?”.
Já se passaram quase 5 minutos que começou a reportagem, ela
provavelmente estava pensando no assunto por duas centenas de
segundos. Você concorda e diz: “Pois é, eu tava pensando nisso”,
porque é o que se diz nessas horas, mas a verdade é que você
estava quase se livrando do peixe podre e de tudo o que essa notícia
representa, quase encontrando um jeito de esquecer que ouviu essa
lambança embalando o treino.
Você
dá o tiro e começa a correr como uma lebre, não sabia que seu
corpo estava hoje assim tão leve, nada indicava que fosse ser tão
fácil e correr faz retornar aquele prazer de alcançar e de viver.
Agora é a morena que desacelera e vai reduzindo até parar e desce
da esteira e faz um aceno de corpo educado, uma meia fala, um simples
tchau, foi gentil. Então a corrida te embala e você esquece, e seus
olhos livres focam de novo nas letras, focam na legenda da TV que
mostra, pela ordem: o tamanho do desemprego em dezembro, o aumento do
Índice de Confiança do Consumidor – e você pensa como pode o
país ter 12 milhões de desempregados e se sair com um aumento nesse
índice, e começa a pensar no que diabos deve ser um índice com um
nome desses que o engravatado da vez explica como se fosse astro de
cinema mudo.
É
hora de desacelerar a esteira, você pensa. Você olha o relógio,
tem mais 5 minutos ali, porque nos outros quarenta seu negócio é
puxar ferro. A TV volta a captar seu olho, mas agora é um desenho
azul: uma pirâmide mostra que 889 mil pessoas no país ganham mais
de 27 mil reais por mês, enquanto mais de quarenta milhões ganham
menos de 800 reais, o que é uma aberração, mas uma aberração
cotidiana e, como que para provar, a reportagem mostra imediatamente
a imagem de um trabalhador de rua, de pele morena, escura, pouco
cabelo, pouco banho, uma camiseta rota que um dia foi branca e que
pode muito bem ter sido descarte de uma daquelas 889 mil pessoas que
ganham mais de 27 mil reais por mês, a maioria delas em São Paulo.
Não, a reportagem não disse nada sobre São Paulo, isso foi você
que pensou, enquanto baixava a velocidade da esteira para 5.0,
4.0, 3.0, 2.0, 1.0.
– Marcão!
– você grita para o amigo que vê chegando. – Bora ali malhar
braço! – você diz isso e, aí, sim, não está mais pensando no
Brasil e seus erros. Sem pensar, agora você experimenta, finalmente,
uma calorosa sensação: enfim, o pensamento sumiu.
*
Jornalista, formada em História e Comunicação. Trabalhou na
Assessoria de Comunicação da Firjan, Regional Friburgo.
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