Quinze
anos
* Por
Mara Narciso
Uma
década e meia, já. Ninguém faz bolo com velas para homenagear
alguém desaparecido há quinze anos. Debutar é apresentar-se pela
primeira vez na vida social. O oposto daqui. No dia 28 de janeiro de
2003 Milena Narciso, a minha mãe, saiu do nosso convívio. Apenas
com detalhada retrospectiva dos fatos revejo os sinais sutis, de
coisa pouca, quase nada, que indicavam que algo sério acontecia
dentro do seu cérebro. Contava daquela impressão que lhe acontecia,
talvez à mesma hora da manhã, uma dor de cabeça, uma leve
fraqueza. Seria uma hipoglicemia? “Vou comer alguma coisa antes de
vir o sintoma. Talvez não aconteça”. O médico cardiologista
falou que seria stress. Foi quando houve o estranhamento de não
saber onde estava. Falei: Mãe, você passa de carro e no sentido
inverso. Agora, a pé e voltando, a avenida lhe pareceu outra. E a
irritabilidade? Perdeu a serenidade. Então, a reprise do
desconhecimento do lugar, precedido pela dificuldade em ler e
escrever. Trocava as palavras. Não conseguia contar um fato,
desconhecia pessoas próximas. A tomografia mostrou uma “mancha”
cerebral, talvez uma isquemia. “Eu não acredito nisso. Tem ‘uma
coisa’ aqui dentro”. Então, ela passou mal, teve uma forte dor
de cabeça, que simulava um AVC hemorrágico. Foi submetida à
cirurgia cerebral. A biópsia deu negativa. Isso nos encheu de
esperança. Recuperou-se, voltou a andar, foi a Belo Horizonte, fez a
Ressonância Nuclear Magnética, e o tumor estava lá,
esparramando-se. Milena falou: “se tenho uma chance, eu quero
tentar”. Da segunda operação - duas cirurgias em 19 dias -, ela
não mais voltou a si. Teve outra hemorragia cerebral, entrou em coma
profundo, ficou no respirador e morreu quatro dias depois, aos 68
anos.
Mãe
foi uma mulher com fácil raciocínio matemático, observadora,
expressando-se com facilidade, lembrando-se de cada palavra e
circunstância. Esquerdista, contida, não conformada, fazia o gênero
rebelde calada. Após o ensino médio, fora da escola por 15 anos,
voltou a estudar, e, após um ano de cursinho passou no vestibular,
formando-se aos 40 anos na 1ª turma da Faculdade de Medicina do
Norte de Minas. Deixou a turma jovem para trás. Seu currículo foi o
melhor, recebendo o Prêmio Carlos Chagas. Mudou a vida dela e a
nossa. Trabalhou como ginecologista e obstetra durante 28 anos na
Santa Casa de Montes Claros. Estava ativa, fazendo cursos, estudando,
e apta para mais alguns anos de profissão, mas o Glioblastoma
Multiforme, tumor dos tecidos de sustentação do cérebro, explodiu
e a matou em 32 dias.
Milena
me mostrou muitos bons caminhos. Ler, estudar, aprender era com ela.
Responsável, cautelosa, humana, foi uma mulher vitoriosa, aquela
pessoa confiável, que tinha crédito total comigo e os demais. Quer
vitória maior do que esta? Só mentia quando afirmava gostar dos
três filhos de maneira igual, pois gostava mais de Helder.
Inesquecível como quase toda mãe, pelo menos duas vezes ao ano, nos
aniversários de nascimento e de morte eu faço minhas lamentações,
rendo-lhe homenagens e cito seus feitos. Foram muitos e não
conseguirei lhe fazer justiça, pois acabo me lembrando dos mesmos
fatos. Passou exemplos e ensinamentos. Um deles: se um alfinete não
é seu, nem olhe, largue onde está.
Apreciadora
de viagens, Milena era pessoa de hábitos simples, gostava de comer
degustando e nada a atrapalhava de dormir. Era a primeira a
chegar para acudir quem dela precisasse. E chegava resolvendo. A
minha mãe foi sim, uma mulher inteligente e bonita, coisa que não
deveria ter - pois não sou uma criança e não confundo as coisas -,
mas tem tudo a ver com a bondade que ela distribuía.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
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