Tudo
de madrugada
* Por
Gustavo do Carmo
O
jornal do fim de noite de um famoso canal de televisão exibia uma
matéria sobre pessoas que faziam compras em supermercados, malhavam
na academia, faziam tratamento de pele e marcavam consulta até com o
dentista. Tudo de madrugada.
Um
dos entrevistados, frequentador de um supermercado que funcionava
durante 24 horas, era Dionísio, um jovem rapaz, na faixa dos vinte e
cinco anos. Ele disse para a repórter que trabalhava o dia inteiro e
só tinha tempo para fazer compras depois da meia-noite. No final da
matéria voltou para acrescentar que era mais prático e tranquilo
comprar no horário alternativo.
De
fato, Dionísio só tinha tempo para resolver os seus problemas de
madrugada. Mas não trabalhava exatamente o dia inteiro. Jornalista
formado, fazia clipagem, ou seja, buscava o que saía na imprensa
sobre o cliente da produtora e criava um álbum com as matérias
publicadas. Seu turno era das quatro às dez da manhã. Deixava o
escritório na Tijuca, andava uns dez minutos e pegava o ônibus.
Chegava ao apartamento, em Copacabana, em pouco menos de uma hora,
dependendo do trânsito. Por volta do meio-dia ia almoçar (ou
jantar) e, depois, finalmente dormia. Acordava às oito da noite.
Fazia o seu desjejum enquanto muita gente jantava. Começava o seu
dia quando os vizinhos chegavam do trabalho, exaustos, o que era
percebido pelo movimento de entrada na garagem do prédio.
Fazia
os trabalhos que levava para casa. Duas horas depois saía à rua.
Passava no caixa eletrônico do banco e em seguida no jornaleiro,
onde comprava as primeiras edições dos cinco principais
informativos e também das duas publicações esportivas. Era mais
pelo trabalho, ao qual se dedicava muito, do que para o lazer. Após
algumas voltas no calçadão da praia, entrava na loja de
conveniência e fazia um lanche que servia de almoço para não mexer
na cozinha de madrugada e acordar os vizinhos do apartamento em
frente. Finalmente ia ao supermercado e fazia as compras da semana.
Não
eram todos os dias que Dionísio visitava o supermercado. Somente às
quintas-feiras. As segundas eram reservadas para a academia, as
terças para o dentista ou o tratamento de pele, na quarta tinha
novamente a academia e às sextas ele ficava em casa por causa do
movimento noturno no bairro. No sábado à noite, viajava para
Conceição de Macabu, onde nasceu, foi criado e ainda moram os pais.
Voltava para o Rio segunda-feira de manhã.
Acostumado
com a rotina na capital, dormia o dia inteiro e só acordava à noite
na cidade pequena, onde tudo fechava cedo. Os bares e restaurantes
funcionavam até, no máximo, às duas horas da manhã. Dionísio não
gostava de beber e os restaurantes eram muito fracos. Ficava
perambulando pela casa durante cerca de quinze horas. Angustiava-se.
Morria de saudades dos pais, mas não via a hora de voltar ao
apartamento alugado no Rio de Janeiro, ao seu trabalho de clipping
e às atividades comerciais da madrugada.
Dionísio
achou o emprego na internet. Tinha o sonho de morar e fazer sua vida
no Rio, mas precisava trabalhar. Chamado para a entrevista, passou e
foi aprovado. Fizeram uma festa em casa. No entanto, os pais ficaram
tristes porque o filho precisou se mudar e eles não podiam ir. A
mãe, costureira, tinha os seus clientes e o pai tinha um bazar que
não podia ficar abandonado. Ainda assim, seria bom para Dionísio
morar sozinho e ganhar experiência de vida. O pai ainda ajudou o
filho a alugar um apartamento de dois quartos na Tijuca, perto do
trabalho.
Na
empresa, o primeiro material que reuniu foi muito elogiado por um
cliente, ex-participante de reality-show. Depois outra aprovação de
uma petrolífera multinacional. A mesma opinião teve uma ONG de
educação. Dionísio passou a ser mais procurado. Com isso, a sua
responsabilidade aumentou. Pediu e ganhou um aumento. Com ele, depois
de alguns meses, entregou o apartamento na Tijuca e alugou outro na
Rua Constante Ramos, em Copacabana, também de dois quartos,
realizando outro antigo sonho: morar perto da praia.
Nos
primeiros dias de trabalho, Dionísio tentou manter uma vida normal.
Mas chegava em casa tão cansado que acabava dormindo e só acordando
às oito da noite. Aí notou que precisava fazer o trabalho que
trouxera e se viu sem tempo para sair na rua e fazer atividades
básicas como ir ao supermercado, à banca de jornal, ao dentista,
além de aproveitar a cidade do Rio de Janeiro.
Um
dia, viu no jornal da televisão uma primeira matéria sobre os
serviços dia e noite. Se interessou tanto que decidiu procurá-los.
Começou frequentando uma loja de conveniência, ainda na Tijuca.
Depois procurou um dentista. Marcou a primeira consulta para uma da
manhã. Já na terceira, o profissional desistiu porque foi assaltado
ao voltar pra casa e parou de trabalhar de madrugada. Dionísio teve
que procurar outro para o seu horário incomum. Só achou em
Copacabana. Quando o supermercado que frequentava na zona norte
também deixou de atender à noite, Dionísio decidiu se mudar. Já
estava viciado em resolver seus problemas urbanos de madrugada. Tanto
que recusou a oferta da dona da empresa de transferir o seu
expediente para o horário comercial.
Um
dia ele foi dispensado. Não soube se foi por corte no pessoal ou a
diretora percebeu alguma coisa errada nele. Apesar de dedicado,
Dionísio teria deixado de incluir uma matéria importante sobre um
cliente. Uns disseram que Dionísio já começara a trabalhar demais.
Estaria tão ansioso para aproveitar as atividades noturnas do
comércio que já não dormia mais. Uma moça teria visto seus olhos
vermelhos e logo achou que era por causa de drogas. Um colega o
encontrou em uma drogaria de plantão, às três da madrugada, na
Tijuca, perto do escritório. Houve várias versões sobre a demissão
de Dionísio. O fato é que o rapaz não se importou. Nem quis voltar
para Macabu. Preferiu continuar em Copacabana, mesmo.
Por
três meses cumpriu o ritual ao qual estava acostumado a fazer.
Aparentemente estava tudo normal. Era como se Dionísio ainda
trabalhasse na produtora de clipping.
A partir do quarto mês, o pai não quis mais pagar o aluguel. Era
uma forma de pressioná-lo a voltar para o interior. Depois de alguma
resistência, acabou cedendo. Entregou o apartamento no Rio de
Janeiro e voltou para a cidade natal.
Tentou
manter a mesma rotina de quando era clipista na Tijuca. Queria
comprar os sete jornais, as duas revistas, ir à academia, ao
supermercado, ao dentista e à esteticista. Não conseguiu porque
tudo isso só funcionava durante o dia, sob a luz do sol, que
Dionísio já rejeitava. Parecia um vampiro que temia virar pó com a
claridade. Já andava de óculos escuros pela casa fechada com
cortinas, assustando os pais e as freguesas da mãe. Ficava o dia
inteiro sem dormir e só saía na rua à noite, na cidade já
deserta. Vivia na farmácia de plantão, comprando estimulantes sem
necessidade, virando assunto na cidade, envergonhando os pais.
O
pai perdeu a paciência e tentou impor um limite. Ou Dionísio
voltava a trabalhar ou seria expulso de casa porque não ia sustentar
vagabundo. Logo se apiedou e ofereceu o bazar para ele trabalhar.
Dionísio não tinha vergonha da fonte de sustento da família, mas
quando adolescente só queria trabalhar como jornalista. Agora, já
maduro, até aceitou ajudar o pai. Desde que trabalhasse de
madrugada.
Como
um empresário visionário, propôs que o bazar funcionasse 24 horas
e ele tomaria conta. Seu Osmar, pai de Dionísio, recusou
imediatamente. Disse que não ia dar lucro e que era perigoso, pois a
farmácia já fora assaltada. Dionísio, então, pediu à mãe que
lhe ensinasse a costurar (algo que ele odiava quando criança) e
propôs adiantar as encomendas enquanto ela dormia. Dona Maria Lúcia
estranhou, mas acabou aceitando.
Dionísio
costurou por algumas semanas. Estava indo bem. Ganhava até elogios
das freguesas da mãe. Eis que o pai voltou a procurá-lo para dizer
que lhe tinha arranjado um emprego de vigia noturno. O rapaz aceitou
na hora, antes de Seu Osmar perguntar se ele tinha certeza, pois era
um emprego perigoso.
E
lá foi Dionísio trabalhar como vigia da farmácia. Ganhou até uma
arma, sem bala, pois servia apenas para assustar os ladrões. O turno
de Dionísio era de meia-noite às seis da manhã. A farmácia ficava
ao lado da sua casa.
Quando
chegava, tomava banho antes do café da manhã que preparava para ele
e a mãe. Já de óculos escuros, assistia à televisão e ajudava a
mãe a fazer o almoço e também a costurar. Às quatro da tarde
começava a fazer seu clipping...
imaginário.
Não
comprava os sete jornais faz tempo. Inventava tudo. Os pais começaram
a ficar preocupados. Principalmente quando Dionísio começou a
atender telefonemas inexistentes de clientes virtuais. Não os da
internet, que ele tentava conseguir realmente, mas não tinha
sucesso. Eram clientes criados por ele mesmo. Já começava a falar
sozinho, organizando reuniões fantasiosas.
Uma
noite, o dono da farmácia foi procurar o pai de Dionísio em sua
casa. Ele não havia comparecido ao trabalho. Os pais e o patrão,
amigo da família, o procuraram pela casa toda. Dona Maria Lúcia
começou a se desesperar. Ainda mais quando o pai achou um bilhete
curto e seco deixado pelo filho: “Fui para o Rio de Janeiro.” A
primeira coisa que Seu Osmar fez foi procurar o revólver do dono da
farmácia. Não estava lá. A sua pistola particular também não.
Dionísio
chegou a Copacabana por volta das dez da noite. Entrou no
supermercado que freqüentava quando morava no Rio. Ouviu pelo
alto-falante o locutor anunciar que o estabelecimento estava
encerrando as atividades do dia. O ex-clipista estranhou.
Perguntou
a um segurança porque eles estavam fechando se o supermercado
funcionava 24 horas por dia. O vigilante, um moreno forte e alto,
disse que eles pararam de atender dia e noite depois de um assalto
que sofreram. Dionísio se indignou. Sacou as duas armas que trouxe
do interior e o rendeu.
Mesmo
em desvantagem física, Dionísio obrigou o segurança a fechar as
portas do supermercado e manteve todos os funcionários e fregueses
como reféns. Gritando muito, completamente alterado, exigiu a
presença de repórteres da mais famosa emissora de televisão.
Ameaçou explodir o supermercado se alguém chamasse a polícia antes
dele terminar o seu plano. Alguns fregueses cochichavam que Dionísio
estava drogado, por causa dos seus olhos vermelhos. Mas ele não
estava. Nem tinha tomado o estimulante. O que o entorpecia era a
loucura mesmo.
Duas
horas depois apareceu a equipe da imprensa. Uma repórter morena e
bonita, de terninho amarelo, acompanhada do cinegrafista, um homem
forte e moreno como o segurança rendido por Dionísio. Este
autorizou a entrada apenas dos dois jornalistas e impôs as condições
para liberar os fregueses e os funcionários do supermercado:
produzir uma matéria sobre os serviços 24 horas na cidade do Rio de
Janeiro. Assustados, os repórteres concordaram imediatamente. E
começaram a entrevistar os freqüentadores, deveriam mostrar que
estava tudo bem. Que era apenas uma pauta de rotina.
Dionísio
atuou como o produtor da matéria desejada. Selecionou algumas
pessoas. Escolheu um casal, um homem de cabelos grisalhos, o gerente
e uma das caixas do supermercado para serem entrevistados. Ele mesmo
também fez parte da matéria. Exigiu uma maquiagem para disfarçar
os olhos vermelhos.
Dionísio
disse para a repórter que trabalhava o dia inteiro e só tinha tempo
para fazer compras depois da meia-noite. Depois de uma pausa na
gravação, acrescentou que era mais prático e tranqüilo comprar no
horário alternativo. Recomendou que este depoimento encerraria a
matéria.
Satisfeito,
Dionísio liberou os funcionários e os freqüentadores do
supermercado. Todos estavam livres após quatro horas de tensão. Com
exceção dos dois jornalistas, que continuaram com as duas pistolas
apontadas por Dionísio. O clipista exigiu continuar a matéria na
academia e, depois, nos consultórios noturnos do dentista e da
esteticista.
Não
deu tempo. No caminho para o carro da reportagem, Dionísio vacilou
ao espirrar. Foi dominado pelo cinegrafista e surpreendido pela
polícia, que o prendeu e o levou para a casa de custódia, sob a
acusação de cárcere privado, porte ilegal de armas e perturbação
da ordem pública.
Condenado,
foi cumprir a pena no manicômio judiciário. Lá, assistiu ao
telejornal do fim de noite com a matéria sobre pessoas que faziam
compras em supermercados, malhavam na academia, faziam tratamento de
pele e marcavam consulta até com o dentista. Tudo de madrugada.
Dionísio
era a estrela principal. Depois, começou a fazer o seu próprio
clipping com
as matérias verdadeiras sobre o sequestro no supermercado publicadas
na imprensa.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração.
Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de
São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess
- http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
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