Irrevogável
* Por Laís de
Castro
Pronto. Ele
estava morto . E o que
restava do corpo depositado ali , naquele caixão
lacrado, ao lado
de outro caixão ,
com os restos
da mulher com
quem tinha
escolhido viver . Dois minutos de pé
naquele cenário e fugi, suando frio . Não
tivesse sido preterida pelo homem
amado e poderia
agora estar morta ao lado dele. Senti uma coceira
no nariz . Tenho rinite ,
pólen de flores
me irrita a mucosa . Saí correndo daquela sala
lúgubre e deixei entrar
pelas narinas o aroma
de eucalipto vivo ,
do quintal . Sentei num banco de madeira
que tantas vezes
nos embalara, juntos ,
adolescentes e apaixonados. Depois
daquele beijo , perto
dali, eu estava entregue
àquela paixão . Eu
te amo .
Também te
amo .
Irrevogavelmente entregue
ao meu
amo e senhor ,
apenas um
rapaz de 22 anos ,
que me
tirava o fôlego até
por aproximação .
O irreal comandava meus
passos , meu
destino , meu corpo . Tudo o que você quiser e o céu também . Se ele partia, e partia porque
morava longe , a distância
me cortava ao
meio , a solidão
me rasgava a carne ,
eu lia as cartas devagar ,
para durarem mais
tempo . Mil
vezes . Era
ele . Nas chegadas, revivia,
ressuscitava. Como se o ressuscitar
fosse tão simples .
Como se, para
reviver , bastasse acordar .
Se tudo tivesse saído
conforme meus
planos , estaria ali ,
agora , morta ?
Ao lado
dele, tinha perdido a noção do perigo ,
me imaginava querida
e me comportava de forma
natural . Atirada ,
independente . Por que? Se queria apenas ser a mulher dele? Por que não
fingi que tinha
machucado o pé
para ser salva e voltar no colo do herói ?
Por que não pedi ajuda
outras vezes ? Por que quando ele
disse vamos mergulhar eu
saí correndo e mergulhei sem esperá-lo, sem ser a mocinha do filme ,
que precisa
da mão masculina ,
sem dar aqueles gritinhos de retardada
porque a água
estava fria ? O macho
se ofendeu, ficou de mau. Em silêncio , ali mesmo dentro da
água , pedi a Deus
– era temente
a Deus , naquele tempo
– que me
tornasse mais doce ,
servil , terna ...
Deus não
colaborou e, mesmo com
verdadeira adoração por
aquele corpo ,
aqueles olhos
e aquela voz , corri na frente de novo , tomei as rédeas , inventei de trabalhar .
Ele pediu que
eu não
fosse, tinha ciúmes .
E que não
saísse de casa quando
ele estivesse fora .
Toquei o bonde , encarei o destino ,
empurrei cadeiras e mesas ,
sentei onde queria.
Irrevogavelmente perdida.
Foi como
fiquei ao ouvir
a condenação . Você
não precisa
de mim . Vou ficar
com ela ,
tão doce ,
tão indefesa ,
tão cordata ,
tão sem
opções . Era
o castigo da eficiência ,
pensei. Gritei. Pedi. Ajoelhei. Implorei. Fiquei uma semana
debaixo das cobertas
e emagreci três quilos .
Era um
trapo , jogado no lixo .
As lembranças me
alimentavam, mas iam ficando cada dia menos nítidas à medida
que o tempo
passava. Eu me
esforçava por mantê-las vivas , aquilo era meu sal , minha amarra ao porto , meu oxigênio essencial .
Nas noites
de insônia , que
foram centenas , reescrevia nossa história ,
primeiro entrando com
o vestido de noiva
na igreja , ganhando o beijo e a mão
no altar , vencendo a parada , vivendo dias
de glória ao
lado daquele insubstituível
deus humano .
Depois , mais
conformada, era apenas
a amante vitoriosa
que ninguém
conhecia e unia nossos corpos em noites sensuais
enquanto a esposa
mal-amada roia as unhas em solidão perpétua . Fiz e refiz diálogos
de paixão , vivemos juntos
por todo
o sempre em
meus suores
noturnos . E ele
agora estava ali ,
a 20 passos , morto .
E eu estava aqui ,
neste banco de madeira ,
sentada e meio morta ,
diante da tragédia .
Preterida porque
era uma pimenta
vermelha , hoje ,
hasteava a bandeira da certeza de que ele não teria
de mim obediência
cega . Juntos ,
nunca teríamos subido os três degraus que nos
levariam ao patíbulo
alado .
De pé ,
de novo , ao
lado dos caixões ,
tive certeza que
nunca estaria ali .
Minhas pernas
me carregaram de novo
para fora . Os
últimos raios
de sol sobre
a cabeça , deixei cair
todas as lágrimas que
meu pobre
corpo vivo
foi capaz de produzir .
Ruminava a amaríssima sensação de culpa
por estar viva , por ter corpo , por respirar , sentir , ver , pensar ,
ouvir e me mover , enquanto ele era nada mais do que o vazio , a ausência , o vácuo ,
o invisível horror
do fim . Mastigava com
violência , até
sangrar as gengivas ,
minha culpa
por não
tê-lo arrancado dos braços de quem só lhe dizia sim , por não tê-lo protegido com meus nãos , por não ter feito um escândalo na igreja ,
sabotado a lua-de-mel, enchido de assunto
a boca maldita
dos cruéis demônios que
sentavam em cima
de nossa triste
sorte com
as pernas cruzadas
e as bocas arreganhadas e dentes aparentes .
Risonhos e risíveis .
Chorava rios
de omissão por
não ter
salvado aquela vida que
já , agora ,
havia sido curta e lamentável ,
já , agora ,
trazia os verbos conjugados
no passado . Sem
presente , nem
futuro . Pobre
deus dos inocentes ,
que se imaginara protetor
e tinha passos
instáveis e quebradiços .
Estivesse eu ao
lado dele e ele
estaria vivo , porque
eu era
a desvairada e delirante
e não deixaria que
ele subisse naquele avião ,
que louca ,
vamos, o que é que
tem, uma viagem tão
curta ? Deixa
de ser teimosa ,
por isso
eu não
queria casar com
você . Não
subo, não vou, não
faço. Olha , que
todos estão vendo a gente
brigar . Não
vou e nem você
vai. Vamos de carro . Não . Não e não . Eu , nunca teria entrado naquele avião
pequeno e inseguro
para satisfazer os caprichos de um
cunhado também
inseguro e pequeno .
Larga essa teimosia ,
sobe aqui logo .
Nem morta .
Sem trocadilho .
Estivesse eu
ao lado
dele e teria preservado seus dias , suas noites , seus ossos , pulmões
e o cérebro . Seu
direito à vida .
Hoje , só
hoje , vão
acreditar nisso, através
do meu olhar
de puro ódio ,
despachando mísseis de dor e ferido pelo esmeril da inconsciência . Hoje ,
só hoje ,
agradeci minha independência
e a incorrigível liberdade
de ir , vir , ser , estar , permanecer
e ficar .
Entrei mais
uma vez naquela sala .
O rosto vermelho
de chorar , estanquei, de pé ,
ao lado
dos caixões . Quem
estava ali não
era mais
a “viúva ” humilde
e abandonada. Agora eu era a fortaleza
que poderia
ter protegido
aquele homem
da morte prematura .
Parti.
Irrevogavelmente livre .
* Jornalista, atuou 18 anos no
grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11
na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e,
agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”,
pela Editora Siciliano.
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