Do além
* Por
Marcelo Sguassábia
Nem imagina você, raro
e por isso mesmo estimadíssimo leitor, o que é acordar tiritando em pleno
inverno, correr para o chuveiro e ouvir o estouro da resistência, dizendo
“Sorry, Mané”. Era o começo de um calvário atordoante, que iria se estender por
todo aquele interminável dia.
Já ouviu falar em
malabares na cara? Pois é, depois do banho siberiano, foi o que ganhei ao parar
no primeiro semáforo a caminho do trabalho. O malabarista devia ser iniciante.
Por um erro de cálculo o pino entrou pela janela do meu carro e deixou um
razoável hematoma entre meu nariz e o olho esquerdo.
Próximo semáforo. Por
míseros 50 centavos, o rapaz da cadeira de rodas me regalou com 3 pacotes de
bala de goma. Na primeira mastigada caiu uma restauração. Discretamente, cuspi
na rua o ex-pedaço de dente. Um guarda municipal viu e me multou por sujar via
pública. Tentei explicar. Ele riu do meu incisivo pela metade, enquanto me
entregava a autuação.
Liguei pra empresa
avisando que ia chegar mais tarde. Parei no dentista pra arrumar o estrago. Na
hora de pagar, peguei o talão de cheques mas não havia nenhuma folha. Precisava
ir ao caixa eletrônico mais próximo. Mas tive que ir atrás do carro, que sumiu.
Corri pra delegacia registrar a queixa. Para lavrar o B.O. precisava apresentar
o RG. Cadê? Devia ter caído na hora em que tirei do bolso o talão, no dentista.
Voltei ao consultório,
a pé. No caminho, fui assaltado. Queria tudo o bandido. Mostrei o nada do talão
sem cheques. Em represália, uma coronhada. Também, convenhamos: isso é bem que
se entregue a um ladrão sério, consciencioso, que luta pra ganhar a vida? Perdi
os sentidos com o golpe, a última coisa que me faltava perder. Mas logo
recobrei. Tinha que enfrentar o pior, que ainda estava por vir.
“O senhor mora onde?”,
alguém perguntou. Estava tão atordoado que tive de pensar pra responder. Uma
assistente social me levou, num táxi com a suspensão vencida e o escapamento
aberto. Tão aberto que chamou a atenção da multidão reunida em frente à minha
casa.
Sim, um helicóptero
tinha caído exatamente sobre ela. Intacto, só o bidê do banheiro da empregada,
que estava sendo saqueado no momento em que cheguei. Gritei: “Macacos me
mordam!” e um macaco, saltando das ruínas do que era o armário de mantimentos,
me mordeu. Com um naco de braço a menos, fui escalando os escombros à cata do
único retrato de mamãe, ao menos isso tinha de salvar.
De frente para uma
câmera e de costas para mim, uma repórter da Globo, vestindo tailleur cinza,
falava alguma coisa sobre o trabalho dos bombeiros. A tragédia estava sendo
televisionada. O celular tocou. Era meu chefe. “O senhor não disse que estava
no dentista? O que está fuçando aí, na casa que caiu? É, a mentira tem perna
curta, Seu Sérgio. Além de faltar ao trabalho, ainda tira proveito da desgraça
alheia. Está demitido.”
Morri enquanto
procurava o remédio para o coração. E para que fique claro que não houve causa
mortis, e sim uma série delas, ditei este texto psicografado pelo autor deste
blog.
P.S.: Se alguém achar
o retrato de mamãe, favor ter a bondade de afixá-lo junto ao meu, em minha
sepultura no cemitério da Consolação. Deus lhe pague, aí embaixo ou aqui em
cima.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Ainda bem que azar não existe. Sorte dele.
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