Desvio perpétuo
* Por Anna Lee
Parece-me improvável que venhamos
a nos unir. O provável é que não nos vejamos nunca mais. Até acho que há de
acontecer um encontro mais, ou até mesmo vários outros. Porque queremos. Só por
isso. Mas não será um encontro casual. O casual não cabe entre nós. Não somos
feitos da mesma matéria. Não fomos feitos um para o outro. Não há nada que nos
atraia para o mesmo caminho, sequer para caminhos semelhantes. Não há nada que
nos leve a esbarrar por aí. Nada.
Mesmo assim sei que haveremos de
nos encontrar. Por um simples motivo: desejo. E mais nada. Ah! Também porque
não somos de nos conformar com a probabilidade das coisas.
Em todo caso, se não conseguirmos
driblar a improbabilidade da presença de um na vida do outro – aliás, principalmente
se isso acontecer –, prosseguiremos com nossas almas intrincadas, mobilizadas
pelo desejo que se consuma no processo que a ausência provoca.
Eu me lembro quando nos
conhecemos. Achei que você chegaria de trem. Sempre quis um amor que chegasse
de trem, numa pequena estação de um lugar antigo. Seria uma manhã amena de
outono e eu estaria lá à sua espera. Ansiosa.
Hoje em dia, as pessoas não
chegam mais de trem. Não nos trens fabricados na minha imaginação. Não numa
cidade frenética em que a multidão não tem tempo para isso.
Você não estava no meio da
multidão quando o avistei, mas era como se estivesse. Um vernissage obrigatório. Um salão oco. Rostos desconhecidos para os
quais eu devia sorrir. Sorri para você e pensei: Deus deve estar zangado comigo por colocá-lo diante de mim. O que
achei que seria apenas mais uma noite transformou-se, então, em sempre.
Nunca senti medo de você, mesmo
quando devia ter sentido. Certas coisas merecem riscos. E não há outra forma de
alcançá-las – que seja por algumas horas – a não ser pela disposição em se
lançar num precipício. Qualquer pessoa sabe disso.
No entanto, a pergunta recorrente
se impõe: se soubéssemos o que aconteceria no final seríamos capazes de dar o
primeiro passo? Uma insistência descabida. Faz tempo que estou convencida de
que entre nós não cabe a pergunta, mas a afirmação: fomos capazes de dar o
primeiro passo porque sabíamos o que aconteceria no final: um desvio perpétuo.
Quer saber mais? Nada disso existiria sem você. Inevitável
descaminho. Mesmo que nunca tivéssemos nos conhecido.
*Jornalista, mestranda em Literatura
Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da
Morte"/Objetiva, ganhador
do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na
Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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