Como não se deve escrever
* Por Urariano Mota
No Brasil dos últimos anos tem surgido um súbito interesse pelo ato de
escrever. Jovens, adultos e maduros têm se debruçado de repente sobre o
fascínio e bruxaria que é o escrever sem o ler, algo tão extraordinário quanto
o falar sem jamais ter ouvido. Muito além do fenômeno Harry Potter, cuja maior
mágica seria despertar jovens para a leitura de obras menos feiticeiras, a
causa desse encantamento diz mais respeito ao espírito da matéria que à matéria
do espírito. Em bom português, objetivo, material: diz respeito a dinheiro, a
sobrevivência mesmo. Ou seja, as mais difíceis provas de concursos para
empregos públicos, de vestibulares para as universidades, exigem, para que o
candidato seja eleito, uma torturante redação. E, aparentemente estranho, até
headhunters, até selecionadores de empresas privadas descobriram a pólvora: que
não há bom falante de inglês, não há bom falante de qualquer língua estrangeira
que não seja antes um bom conhecedor da própria língua, aquela maltratada e
desprezada língua que o indivíduo ouvia desde o ventre da mãe.
Daí que no mercado pululam os livros que anunciam e prometem o
impossível, o resultado do bem escrever sem o processo do bem ler. Que dizem
ensinar a escrever sem o processo longo, permanente, educador de ler, ler e ler
para o prazer de toda uma vida. Daí que
aparecem prodígios como “Escrever é fácil”, cujo título já é uma declaração de
engodo. E indiferente a essa pista do título a humanidade, necessitada, vai,
inferno adentro sem ver o aviso de Dante à porta, “Deixai toda esperança, ó
vós, que entrais”. Quanta alegria no engodo, quanta tristeza na experiência!
Porque logo sem demora os cadáveres, os suplícios, as punições aparecem.
Segundo o altíssimo poeta, “Na verdade, eu estava bem à frente ⁄ do recôndito vale doloroso, ⁄ de que vinha um rumor surdo e plangente.
⁄ ⁄
Tão sombrio era ele, e nebuloso, ⁄
que eu, por mais que escrutasse tudo a fundo, ⁄ nada enxerguei do que era então curioso...” –
E sintam, e imaginem que o poeta assim se expressou porque... “Porque escrever
não passa disso: uma técnica de comunicação...” (!!!) Meus amigos, meus
inimigos, meus pares, meus ímpares, meus semelhantes, meus dessemelhantes: esta
é uma afirmação que daria toda uma tese, todo um volume de uma nova comédia
inumana. Numa só frase o autor do remédio para os incautos faz uma
brevidade-maravilha: que escrever é uma técnica!, de comunicação. Sabemos todos
que técnica é um modo, um método prático de se fazer algo, plenamente
transmissível por treino, por repetição. (Sinto o autor assentindo com o
queixo, “pois é isso mesmo”). Pois. Acabamos de entrar no reino da mais pura
animalidade. Temos que descer às profundas para de lá forcejar um retorno.
Vejam.
No reino das profundas onde nos achamos já vemos que escrever, se é uma
técnica, certamente não é como uma técnica de consertar um radinho de pilha ou
uma televisão. “Mas é, de uma outra maneira”, insiste o autor do
manual-maravilha. De que maneira? ousaríamos perguntar. Ao que ele nos
responde: “Usem sempre a ordem direta: sujeito, verbo, complemento. Escrevam
períodos curtos usando palavras de uso comum”. Ah, e mais, de passagem,
diz-nos: “Evitem, também a dupla negação. Há quem escreva: ‘Eu não entendi
nada’. Ora, se não entendeu nada, então entendeu tudo, certo? Lembrem-se da
regra de álgebra: menos com menos é igual a mais! Em vez disso, prefiram: ‘Nada
entendi’ ”. Ah, ah, ah, ah-ah-ah. Muito bom. Se é com esse gênero de mestre que
as novas gerações aprendem a escrever, estamos perdidos. Porque vejam, a profundidade
das profundas não tem fundo, não tem limite. Porque vejam:
Primeiro, um mestre não deveria recolher exemplos de disciplinas que
desconhece. Seria algo como um geólogo iniciar sua palestra a dizer: “segundo o
autor de A Divina Comédia, o grande humorista Dante, o primeiro geólogo a
escavar a terra para ver se lá embaixo havia o inferno ...”. Ora, menos com
menos jamais foi igual a mais, sequer na aritmética – o que existe é uma
operação, de multiplicação, cujo produto de números negativos etc. Segundo,
segunda camada nas profundas, a transposição, o nivelamento mecânico de
conhecimentos de objetos distintos gera uma extraordinária confusão e
ignorância. O que dá um sinal contrário em matemática, não faz o mesmo quando
se escreve. Pelo contrário, “não entendi nada” tem um peso expressivo, de
reforço de negação, que não está presente em “nada entendi”. Quem assim se
expressa é cidadão inglês de anedota. Terceiro, é muita estupidez cerrar o
pensamento na ordem direta, tão só e somente. O pensamento é, antes, o pulo, o
salto, o alcance da essência numa desordem que é uma nova ordem, que não se
expressa tão burramente como em “O bebê é bonito”. Vejam, esta frase anterior,
curta, feia, direta, é de uma burrice que rejeita “De sua formosura deixai-me
que diga: é tão belo como um sim numa sala negativa”.
Sabemos há muito que o ensino convencional, do currículo das escolas,
não se faz para abrir e formar novas consciências. Sabemos que o massacre
gramatical, aquele que mata os jovens com regras e mais regras, contraditórias,
normativas e mumificadas, já fez um estrago de rejeição à língua há séculos.
Mas não podemos, nem devemos, substituir a ordem medieval por uma nova
medieval, que é o empobrecimento do saber pela norma do tatibitate, da asnice da
tradução automática dos programas da Internet. É terrível substituir a norma
irracional pelo simplismo, pelo facilitador, por uma “comunicação”. Reduzir a
escrita à finalidade da comunicação traz danos irreparáveis ao pensamento. Um
deles é subestimar a capacidade de compreensão do público leitor. Preconceito
que termina por contagiar a própria criação. Para melhor “comunicar”,
começariam a ser censuradas manifestações importantes do fazer e fazer-se
humano. Sem esforço, de imediato, lembraríamos Maiakovski, que sofria
recomendações de bolchevistas equivocados para que tornasse mais acessíveis os
seus poemas para a compreensão das massas. De imediato, ainda, lembramos o que
sofrem os criadores obrigados a sobreviver na indústria das artes e
entretenimento capitalista. Em nome da comunicação, dizem-lhes sempre: baixem o
nível, porque o povo é burro.
É nessa paisagem que a educação e a inteligência deixam de se chocar
com recomendações para os jovens que vão ao vestibular (lições de sucesso para
o sucesso!) ... mas antes, devemos escrever bem claro: QUEM TIVER OS NERVOS
SENSÍVEIS, NÃO VEJA O QUE SE SEGUE, porque
“Afinal, não importa o que você queira escrever. Todo texto obedece aos
mesmos princípios. E esses princípios se aplicam esteja você escrevendo para a
mãe no interior, para o gerente de seu departamento ou para o presidente da
República. Não importa se o seu desafio literário for uma redação escolar, uma
tese de mestrado, um relatório técnico ou um romance autobiográfico....”.
E como, infelizmente, não temos mais tempo, deixem-nos por
favor soltar de vez mais alguns trechos de crua tragédia para a sensibilidade
humana:
“Toda frase é uma equação ... vírgulas geralmente quebram a fluência da
leitura, exigindo que os olhos e a mente do leitor avancem aos trancos
pelo texto ... a lógica é uma parte da
filosofia encarregada justamente de pôr as idéias em ordem ... Lembrem-se
sempre de que a concepção precede a criação ... Como puderam ver, escrever é
fácil. Desde que tenham o que dizer” .
De frases que são verdadeiras equações até o escrever que é fácil para
quem tem o que dizer, só nos resta parodiar Mark Twain: Escrever é muito fácil.
Eu mesmo já tentei várias vezes.
Somente espero que este artigo não se tenha tornado a última lição de
como não se deve escrever.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro
da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Os surdos (eles exigem assim serem chamados, não pedindo por um salvador eufemismo) estão aí para provar que sem ouvir ninguém fala, e você, Urariano, muito bem nos lembrou disso. Sem ler, nada se escreve.
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