* Por Fernando Barreto
"Talvez nunca possamos derrotar esses porcos, mas não precisamos nos juntar a eles" Murilo Castro (um brasiguaio)
Capítulo 4 - BUT YOU CAN'T STOP THE ROCK
" No meio do caminho de Dirceuzinho havia uma pedra de crack
O caminho de Dirceuzinho era a Rua dos Gusmões
Dirceuzinho fumou a pedra e distorceu seu caminho
A festa terminou, meus filhos!"
"Castro, meu filho, nada pode ser pior do que uma família... Eles provavelmente tentaram te enfiar garganta abaixo a idéia de que você deveria constituir família quando chegasse à idade adulta. A maior decepção que tenho na vida é comigo mesmo, por ter sucumbido a essa idéia cretina. Eu não tinha convicção de que isso era algo positivo, mas fui burro o bastante para me opor à minha intuição. Achei que casando com uma hippie teria um lar equilibrado. Ela fumava maconha mas não bebia, de modo que eu poderia controlar meu alcoolismo. O resultado é que hoje eu dependo da bebida mesmo sem poder beber mais. Minha mulher espera que eu morra logo e eu sei disso, embora ela não fale abertamente sobre isso, o que a isenta de qualquer culpa. E o meu filho... Ah... Como pude... Eu deveria saber que ele traria desgosto mesmo antes de nascer. Eu tinha pesadelos terríveis quando minha mulher estava grávida dele. Sonhava que ele nascia com a forma de filhote de golfinho, com nadadeiras no lugar dos braços e aquilo era bastante perturbador. Eu chegava exausto no fim dos dias e tinha medo de dormir por causa desses pesadelos. Mudando de assunto por um instante, eu tenho certeza que você se pergunta quem é aquele cara fardado na foto da escada, não é?" – foi o que disse Seu Dirceu, para quem Castro era o que mais se aproximava de um ouvido solidário.
"Pois bem... Aquele cara da foto é o General Aguiar, que também era médico e que foi preso e perdeu sua licença pra clinicar porque receitava narcóticos para si mesmo. Ele é o verdadeiro pai do Dirceuzinho. Se algum dia o Dirceuzinho descobrir, certamente vai surtar... O General Aguiar era um homem cheio de contradições em seu caráter, mas que fascinava a minha esposa. Ele vivia se pavoneando com sua farda impecável. Viveu seus últimos dias nessa casa, moribundo, reacionário, ranzinza e destruído pela bebida. O cigarro perene esfumaçando o ambiente... Tínhamos medo às vezes, porque ele ficava limpando suas armas completamente bêbado dentro do quarto dele. Eu acho que a razão desse fascínio não era por outra que não o fato dele fornecer drogas a ela. E você pode imaginar que a partir de um certo ponto, anterior ao surgimento do General Aguiar em nossas vidas, meu casamento com a Betsy esfriou no que dizia respeito a sexo. Eu não deveria contar isso pra você, mas eu gostava de ver minha mulher transar com aquele milico. Isso a satisfazia sexualmente, ou pelo menos fazia com que ela conseguisse as drogas que procurava. Foi bom para reacender meu desejo por ela, anda que provisoriamente. Além do mais ela abriu um precedente que me permitia ter uma certa liberdade fora de casa. E de qualquer forma, hoje em dia não tenho mais ego. Não consigo enfatizar suficientemente o quanto o casamento me parece uma instituição ridícula. O único momento verdadeiramente romântico da nossa relação foi poder juntar nossas famílias no dia do nosso casamento." – concluiu Seu Dirceu.
Naquele momento Castro entendeu de uma vez por todas que o fato de ver outros humanos em situações realmente constrangedoras não diminuiria sua angústia, sua dor ou seu desespero. Sua posição podia ser menos triste do que a de muita gente próxima a ele, mas ainda assim podia se sentir verdadeiramente insatisfeito. Parecia mesmo que os outros desciam baixo demais, e não que ele estivesse em posição privilegiada. No entanto, por alguma razão que Castro não conseguia identificar, era quase um prazer experimentar aqueles tormentos.
Traçando um paralelo entre a vida de Seu Dirceu e a de alguns azarados notórios do mundo musical, podemos afirmar seguramente que ela era algo como a soma das desgraças ocorridas na carreira de bandas como Badfinger e Patto, onde suicídios, acidentes automobilísticos e doenças fatais colocaram tudo a perder.
Para Seu Dirceu cada amanhecer vinha como se fosse um tiro nas costas. "Descobri recentemente que sofro de abscessos retais avançados." – disse Seu Dirceu, segundos depois de abrir a geladeira da cozinha da pensão e olhar desoladamente para seu interior durante três minutos. Havia ali um copo de gelatina vermelha já com casca e na parte interna da porta, um velho limão seco e amarelado cortado pela metade.
Aquele homem passava regularmente por provações das mais diversas sem que realmente tivesse experimentado nenhuma mobilidade social. Não tinha vivido a verdadeira miséria material, mas isso apenas o atormentava mais, pois seu sonho de prosperidade nunca se concretizou. Sabia que uma eventual falência financeira o faria dar cabo da própria vida. Sua motivação para a vida cotidiana afundava numa fossa sanitária sem manutenção. À medida que Seu Dirceu deteriorava como pessoa, a energia vital de sua casa também deteriorava.
Não tardou para que seu filho Dirceuzinho afundasse nas drogas pesadas. Fumou maconha por pouco tempo, nunca cheirou cocaína e partiu para o crack com uma convicção inabalável de que havia nas pedras uma relação de custo-benefício favorável.
Numa noite Dirceuzinho bateu à porta do quarto de Castro anunciando que a partir daquele momento o pagamento pelo quarto deveria ser feito diretamente a ele. Como Castro astutamente percebeu, aquilo era indício de confusão mental por parte de alguém da família.
Tudo em Dirceuzinho cheirava a roubo, vício e trapaça. Apesar da juventude, o rapaz já ostentava na cara muitas marcas de batalhas perdidas, privações, traumas e arrependimentos. Tinha cabelos loiros, cheios e enrolados, Os olhos matreiros o culpavam com antecedência até mesmo por aquilo que Dirceuzinho ainda não havia sido acusado. O rosto parecia embalsamado, com uma espécie de camada de parafina sob a pele e seus olhos pareciam gelatinosos como os de um tipo de anfíbio que ainda não existe nos catálogos das espécies conhecidas. Seus braços eram curtos demais e isso era ainda mais perceptível quando se olhava para seus blasers no guarda-roupa. Dirceuzinho gostava de blasers sintéticos, embora de um modo geral fosse desleixado com as roupas.
- Castro, você sabe que apesar do intenso atrito entre meus pais, eu não tomei partido nem pra um lado e nem pra outro. Sinto desprezo semelhante por ambos. Vim lhe incomodar em seu quarto pra propor que a partir de agora a administração dessa casa seja semelhante à de uma empresa séria. O que havia até agora era uma administração informal e frouxa – disse Dirceuzinho.
- Faça sua proposta, meu caro... – disse Castro.
-Você pode dar a mim o dinheiro referente ao pagamento do quarto, então lhe dou um recibo. Eu preciso do dinheiro imediatamente. Eu sei que o dia do pagamento pelo seu quarto ainda não chegou, mas caso você aceite pagar com antecedência, será agraciado com um bom desconto – disse Dirceuzinho.
- Você precisa da grana pra quê, Dirceuzinho? – perguntou Castro.
- Quero comprar umas pedras de crack e fumar trancado no armário do meu quarto. Embora nesse exato momento eu não esteja parecendo alguém que está atravessando uma crise de abstinência brutal, você pode acreditar que a droga se faz necessária com urgência. Eu concordo que o prazer que eu terei dentro daquele armário vai durar pouco, pelo menos para os padrões burgueses, mas eu tenho plena convicção de que esses breves momentos fazem valer a pena aquilo que esses mesmos burgueses chamam de 'vida'. E isso que eles chamam de vida me faz procurar a razão pela qual eles têm medo da morte. Parece até que a morte para esses casos é um problema, ao invés de uma libertação. Nesses momentos eu me afasto um pouco dessa nefasta polarização entre o certo e o errado que me é imposta o tempo todo. De qualquer maneira eu sei que sou diferente, para o bem e para o mal. Não me sinto humano. Teria muita vergonha disso, seria algo realmente constrangedor. Não me sinto brasileiro também, mesmo sendo estrangeiro em todos os outros países do mundo – respondeu Dirceuzinho.
- Como você pôde chegar a esse ponto, moleque? Tá fumando pedra, rapaz? Você merece apanhar com um cabo de vassoura na frente dos hóspedes! – perguntou Castro.
- Você deveria saber que se é pra fritar o juízo, isso é mais viável que outras drogas. Essa cocaína ruim que é vendida por aí só nos faz perder dinheiro e passar nervoso. Minha mãe, por exemplo... Muitas vezes ela perdeu a linha no pó e apesar disso, hoje em dia algumas pessoas a vêem como uma mulher exemplar na medida do possível, dentro dos limites que a vida lhe impôs e tal... Essa hipocrisia me enoja demais... Essas campanhas antidrogas que pressupõem que colocando medo no jovem potencial usuário, eles deixariam de usar. Se droga fosse ruim, ninguém usaria. Cada um que assuma as consequências de seus atos. Não é preciso que haja drogas pra que uma família seja destruída, porque ela é uma farsa, de qualquer maneira. Imagine que poucos dias antes da sua chegada eu ouvi a porrada comer no quarto dos meus pais e pensei que ele estivesse espancando-a... Dei uma bica na porta e vi que era ela quem o espancava. Ele tinha achado um bilú nas coisas dela. Nessa casa eu sou como o enteado inconveniente que merecia ser lobotomizado. Nunca sou visto um filho. Não os culpo por me tratarem assim. Eu os culpo pela estupidez de terem me concebido. Nada pode ser pior que uma família. E as famílias brasileiras são ainda mais bizarras que as outras – disse Dirceuzinho.
- Dirceuzinho, eu até gostaria de ver os desdobramentos dessa história, mas não acho que esse recibo fornecido por você venha a ter alguma validade caso eu o apresente a seus pais argumentando que já fiz o pagamento. Eu não me importo com sua incapacidade de se manter sóbrio e nem com as consequências que seu vício desencadearão na sua família. Talvez eu devesse até mesmo lhe agradecer por me fornecer histórias como essa, muito embora fossem pouco aproveitáveis para algum livro, caso eu resolvesse escrevê-lo. Eu digo isso porque de tão absurdas que são as disfunções em sua família, isso tudo pareceria uma ficção tosca e não uma história verídica. Pareceria forçado e não funcionaria como exemplo do quão baixo é o patamar a que desceu a humanidade. Eu quero apenas ter tranquilidade quando estiver dentro do meu quarto – disse Castro.
- Tranquilidade de verdade nós não teremos nunca, e não há ninguém melhor do que você pra saber disso. A encruzilhada em que todos nós estamos é resultado do que chamam de evolução humana. Não adianta balançar a piroca, porque a última gota de mijo é da cueca... No caso da dita evolução tecnológica e das comunicações, vemos nossa espécie mostrando mais do que nunca o quanto ela pode ser estúpida. Nisso nós concordamos. Diariamente nos empanturramos de informações bizarras sobre as incríveis pataquadas que nossos semelhantes aprontam em todos os ramos de atuação humana. Você poderia estar no seu quarto com a falsa sensação de sossego de quem acabou de renovar o aluguel do quarto enquanto um infeliz de qualquer parte do mundo poderia perfeitamente desgraçar a sua vida sem que você possa fazer nada. De qualquer modo, meu caro Castro, alguma coisa nós já conseguimos. Você é um aventureiro paraguaio morando numa espelunca barata e sem classe na região central de São Paulo. Gosto de saber que isso faz com que você sinta um pouco do sabor da vida. Mas o fato é que eu preciso fumar uma pedra, e queria conseguir o dinheiro fazendo uma proposta íntegra a você, que provavelmente é a única pessoa para quem eu poderia recorrer sem ter que mentir sobre o destino do dinheiro.
- Que loucura, isso deve ser um flashback de ácido, não pode ser verdade... – disse Castro.
- A loucura é decisiva, meu amigo... E além do mais, nunca é saudável começar a questionar a própria lucidez. Todos nessa casa estão montados na besta selvagem da loucura! Pra um aventureiro dito liberal como você isso deveria ser uma bênção. Vivemos numa época perigosa. Otimismo para o futuro é coisa de especuladores imbecis ou para gente que quer lucrar com a burrice da massa. O limiar entre aquilo que é são e aquilo que é insano se perdeu há muito tempo, se é que um dia ele existiu realmente. Se um dia você escrever um livro e fizer uma daquelas festinhas de lançamento em livrarias, servindo espumantes, eu estarei lá e essa será uma experiência nada sublime pra você, Castro. Você estará de óculos diante daquela fila de leitores idiotas, falsos leitores na verdade, para os quais você estará assinando seus livros, que não servirão pra nada em muito pouco tempo. Estarão sendo vendidos por um real em sebos do centro da cidade, no meio de livros didáticos obsoletos. Se você arrumar uma editora, será obrigado a deixar que um cretino qualquer faça o prefácio. Você vive repetindo aquela ladainha sobre libertar-se das ocupações burguesas e entregar-se completamente à literatura, mas você é um burguês. E um mau burguês. Isso pode parecer redundante, mas o que eu quero dizer é que você é um burguês insatisfeito e incompetente com sua condição, e é que isso faz de você um mau burguês. Isso o coloca abaixo dos burgueses convictos. Abra o olho, burguesão, porque o porco de hoje é o bacon de amanhã! Tivemos um hóspede aqui não muito tempo antes da sua chegada. Apenas alguns meses antes. Era um pretenso escritor. É desnecessário dizer que tudo o que escrevia era pior que lixo, mas ele ao menos era um cara divertido, porque largava o trabalho para se drogar e beber, fosse qual fosse a hora em que eu o chamasse para isso. Seu apelido aqui em casa e nas redondezas era Letrinha. Vivia dizendo que estava buscando experiências de vida que pudessem fazer dele um escritor de verdade. Jurava para si mesmo que um dia o reconhecimento comercial compensaria, ou completaria a sua trajetória errante. Na última semana em que esteve aqui não parou de falar de um projeto pra um livro no qual estava trabalhando. Dizia ser um calhamaço de dimensões tolstoianas, com quase mil páginas e com dezenas de personagens. Era hippie e por isso tinha a simpatia da minha mãe. Parecia um Che Guevara depois de fumar crack. Era uma figura patética, por isso nem sequer existe mais. Mas foi divertido tê-lo aqui durante o tempo que permaneceu. Você não é tão pretensioso como ele. Você é mais pedestre, menos alucinado. Mas mesmo assim, está indo pro mesmo caminho que o Letrinha. Você vai sumir e essa casa vai continuar, ainda que de uma maneira bizarra e destrambelhada. Já que falei do Letrinha, não consegui evitar a lembrança de um velho golpista paraense que foi um dos pioneiros dos ladrões paraenses conhecidos como ratos d’água. Que loucura era aquele velho... Fumava pedra dentro do quarto... Sempre dava um jeito de entrar com alguma putinha adolescente no quarto, o que causava a ira da minha mãe e fazia meu pai morrer de rir... Ele dizia se tratar apenas de ‘um velho drogado que traça criancinhas’. Recebíamos reclamações de donos de bares das redondezas porque o velho bebia e saía sem pagar. Ele argumentava que bebia pra esquecer, e por isso esquecia de pagar pelas bebidas. A verdade é triste mas é importante. Em tempos de guerra a verdade é tão precisa que deveria ser blindada numa cápsula de titânio. Eu conheci todo tipo de gente tendo pais donos de pensão. Isso vai continuar acontecendo. A estrutura dessa casa não muda, está fossilizada há décadas, imune a mudanças, sejam elas por motivos morais ou financeiros, ou o que quer que seja. É preciso que haja hóspedes e eles provavelmente nunca deixarão de ser bizarros, porque isso é inerente à nossa espécie – disse Dirceuzinho.
- Deixe que eu fique sozinho por algum tempo, Dirceuzinho. Volte mais tarde. Não é tão ruim ouvir você dizer essas coisas, mas você deveria tentar arrumar pedras pra fumar aí nas ruas. Há vários nóias fazendo a correria pra conseguir a próxima pedra e você está gastando seu tempo aqui comigo. Estou sem um puto centavo e tenho dívidas que nenhum homem honesto seria capaz de pagar – disse Castro.
- Agora vou sair... Vou pra Cracolândia fazer a via sacra do nóia sem dinheiro. Espero que meu corpo morra ainda hoje para que eu possa voltar à minha forma inorgânica o quanto antes. Sabe, Castro... Eu não tenho nenhuma moral, sou um verme inescrupuloso, um devasso venal. Eu queria que você soubesse que tenho tido sonhos estranhos em que você aparece vestido de policial e sempre chega quando estou prestes a fumar uma pedra de crack ou transar com a minha mãe. Nos sonhos a idéia de transar com ela não parece tão repugnante quanto na vida real. Também sonho freqüentemente com um médico chinês que tenta me curar do vício em crack. Basta ele aparecer no sonho para que eu comece a ter um ataque causado por abstinência somado ao medo dele e começo a me debater como um peixe fisgado. Aquilo é assustador demais. Nos meus sonhos eu fujo dessas criações da minha própria cabeça e na vida real eu vivo fugindo da comunidade indie. Eu quero logo me tornar um cadáver anônimo deitado no Largo do Arouche do que continuar com isso – disse Dirceuzinho, com cara de órfão pedinte e traços inumanos. Depois se acabou numa grande gargalhada, interrompida pelo chamado do telefone, que pôde ser ouvido vindo de seu quarto. Saiu desajeitado e fechou a porta, deixando Castro finalmente só.
Castro sabia que quando Dirceuzinho começava a falar, não havia meios de detê-lo antes que parasse espontaneamente. Dirceuzinho nunca aceitava de bom grado qualquer interrupção a sua verborragia ou negativa para suas vontades. Sabia também que se tentasse continuar a conversar, quanto mais falasse mais hediondas seriam as respostas dadas por ele. O vício em crack potencializava ainda mais essa tendência. Castro passou a ter um encosto. Não era qualquer encosto. Era um encosto nóia.
Leia, amanhã, o 5º e último capítulo deste conto
• Escritor
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