* Por Fernando Barreto
"Talvez nunca possamos derrotar esses porcos, mas não precisamos nos juntar a eles" Murilo Castro (um brasiguaio)
“Vocês nunca vão saber realmente quais são as minhas intenções, seus infelizes!!" , foi o que gritou Dirceuzinho, o filho do dono do pensionato no meio de uma noite em que Castro já tinha desistido de pensar em ter alguma tranquilidade e introspecção. Ainda assim percebeu que estava desfrutando de um pouco daquilo até aquele momento em que começaram os gritos. A partir de então, um frenesi insone tomou a pensão de assalto. Nunca ficou claro para Castro se Dirceuzinho queria chocar os hóspedes, mas quando ele gritava, as atenções convergiam para ele.
"Seu micróbio!!! Você vai chorar o choro dos realmente desgraçados, e isso vai acontecer assim que você atingir o auge do seu vício e atentar para pessoas que não estão sorrindo, ainda que estas pessoas tenham certamente expectativas boas para os momentos seguintes, e você que já não estava sorrindo vai chorar..." – dizia Seu Dirceu, o dono do pensionato, em resposta ao filho.
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A princípio, a idéia de morar num outro quarto de pensão não agradava tanto a Castro. Não se tratava de nenhuma ânsia por status ou algo assim, mas ele temia pelo que as pessoas ali instaladas pensariam de sua excentricidade. Ele gostava de ser exatamente o que o paulistano chama de caipira ou bicho do mato. Essa insegurança durou pouco tempo. Todas as pessoas que viviam naquela casa conseguiam, cada uma a seu modo, inserir algum elemento de caos no contexto. Castro surpreendeu-se positivamente com isso, porque ali ele podia ser considerado normal se comparado aos outros.
A casa era ampla, localizada na Rua Mamoré, no bairro do Bom Retiro. Um imóvel bastante valorizado àquela altura pela localização conveniente, ainda que fosse também excessivamente movimentado e barulhento. No interior da casa, na parede ao lado da escada que dava acesso ao andar superior havia a foto de um militar pesadamente condecorado. A única coisa que Castro pensava sobre aquele sujeito da foto era que provavelmente ele estava morto e que tinha sorte por isso. Nunca procurou saber de quem se tratava.
Na ocasião de uma noite quente de insônia, Castro foi beber água na cozinha e viu um gordo de calcinha comendo a coxa de um frango e ouvindo technopop caribenho num cd player portátil. Nunca tinha visto aquele sujeito na casa. Nunca mais o viu a partir de então.
Dirceuzinho, o filho de Seu Dirceu, o dono da pensão, tinha uma vitrola e um único LP. O álbum em questão era 'Tudo Foi Feito Pelo Sol', dos Mutantes. A esposa de Seu Dirceu, Betsy, dizia que o disco deveria se chamar 'Tudo Foi Feito Pelo Yes'. Betsy era uma ex-hippie fã de Rock Progressivo. Uma quarentona com um rosto bonito, mas envelhecido e triste. Tinha cabelos loiros, longos e lisos. Seus decotes e suas saias insinuavam bons peitos e uma boa bunda. Convivia com distúrbios familiares constantes. Seu filho Dirceuzinho, por exemplo, gostava de promover sexo entre gatos e coelhos. Betsy sempre pensou que essa obsessão do filho por relações sexuais interespécies fosse consequência da falta de interesse por colecionar discos ou livros, ou a ausência de qualquer outra atividade relacionada à cultura pop, coisas que a remetiam à sua juventude, quando até mesmo as músicas e artistas estritamente comerciais eram muito superiores a qualquer coisa produzida naqueles dias dífíceis do começo do Século 21.
- Essas bandas que insistem em continuar suas atividades depois de perder seus principais membros me deprimem – dizia ela, que tinha algumas seqüelas resultantes dos bons tempos, mas que a despeito disso era uma senhora afável. O gosto pela música rendeu amizade entre ela e Castro. Naquelas conversas sobre música, Castro argumentava que o Rock Progressivo brasileiro tinha qualidade, enquanto ela considerava que se tratava de picaretagem e oportunismo.
- Comigo acontece a mesma coisa. Outro dia mesmo fui ver um show daquele Credence picareta pra acompanhar uma amiga. Ela achava que era o Credence original. – disse Castro.
- É difícil acreditar mesmo... Não são só os jovens que não têm qualquer noção de música. A minha geração é uma desgraça. Todo mundo está acostumado a ouvir desde cedo os avós dizendo que a música era boa mesmo nos velhos tempos, e essas crianças ouvem seus pais dizerem a mesma coisa e hoje eu vejo gente de 30 anos dizendo que a música da época de sua adolescência era realmente boa e que a de hoje é muito ruim. Isso sem contar os 'especialistas' da mídia. Deveriam morrer em acidentes de estrada, todos eles. A maioria dos artistas que surgem em qualquer época causa constrangimento. O discernimento sempre foi importante, sempre foi necessário saber selecionar com algum critério e alguma sensibilidade o que tentam nos enfiar goela abaixo. A mídia apenas expõe esses infelizes mais hoje do que antigamente. E temos a sensação de que quanto mais desgraçadamente ruim for um artista, mais ele está presente no rádio, na televisão e onde quer que seja. A essência estará sempre no grito desembestado de rebeldia num internato. Agora procuro apenas me divertir com música, não esquento a cabeça com a burrice dos outros. Olhando em retrospecto, me parece que musicalmente no Brasil os anos 60 duraram até 1974 ou 75... Havia um atraso natural para a assimilação de certas tendências musicais mundiais. Pra começar a falar sobre isso, teremos que levar em conta o contexto político da época e evidentemente essa é a parte chata do assunto. É uma brecha pros panfleteiros de barba e chinelo fãs de Geraldo Vandré. A defasagem cultural da qual eu fui vítima é algo que me magoa muito. Eu odeio a minha geração e também a geração imediatamente anterior à minha. Uma geração morta. Não é a toa que tanta gente tosca do PSDB vive se vangloriando das suas atividades panfletárias do período dos militares no poder. Se você soubesse como eu odeio o Geraldo Vandré talvez você me levasse mais a sério. Meu marido teve uma fase carioca na vida e em 1969 morou no Solar da Fossa, em Botafogo. hoje há um Shopping ali. Muitos artistas importantes viveram lá e mesmo que eu não me interesse tanto pela MPB, eu acho inacreditável que ele nem ao menos tenha lembranças remotas dessa época. Quando eu o conheci, eu insistia muito pra que ele me contasse sobre o que se passava ali, sobre o envolvimento dele com os outros hóspedes e ele sempre dizia que não lembrava ou que não havia nada digno de nota na vida dele naquele período. Juntando isso aos incêndios na Record que destruíram muito material de vídeo, vemos que as informações que temos sobre cultura do nosso país são muito poucas. não sabemos se os tais incêndios foram criminosos ou não. Eu não culpo esses fatores pela minha falta de interesse por MPB. Talvez se existissem mais informações sobre os fatos e períodos obscurecidos pelas circunstâncias, eu gostasse ainda menos disso – disse Betsy.
- Eu levo a senhora a sério. Agora eu a respeito mais ainda... Eu odeio muito o Geraldo Vandré também! Odeio todos os autores de canções de protesto! – disse Castro.
- Só pra gente concluir aquilo sobre o qual falávamos, eu diria que guardadas as devidas proporções, viver no Solar da Fossa nos anos 60 era como viver num Chelsea Hotel brasileiro. Mesmo que a gente não goste de MPB. Eram os anos 60 e você sabe, tem aquela história de que se você se lembra dos anos 60, você não esteve lá. Só que meu marido sempre foi careta e reacionário, o que nos faz pensar que ele esteve duplamente ausente. Mas há também o fato de que em 69 o AI-5 já estava rolando, e era aquele baixo astral terrível. Talvez você pense que sou apenas uma mulher de meia idade, fã de Joni Mitchell e de Rock Progressivo – disse Betsy.
- Não há nada de errado com isso. Eu gosto de Rock Progressivo, gosto da Joni Mitchell, da Carole King, da Judy Collins, e das outras cantoras tristes e saudosistas do fim dos anos 60 e começo dos 70. O que me incomoda é essa MPB frouxa que se faz hoje, essa música higiênica pra sambistas universitários de apartamento – disse Castro.
- Sim, eu sei... Mas eu preferia ser vista como uma beatnik da velha guarda e não como uma hippie destroçada pelo fim dos bons tempos.. Há a parte terrível da minha história, que é o fato de eu ter sido fraca e cedido às pressões sociais, ter constituído família, mesmo sabendo que era um caminho estúpido... Hoje passo horas antes de dormir pensando naqueles caras que tocaram nas bandas embrionárias dos gigantes do Rock dos anos 70, as que saíram antes dessas bandas estourarem...Passaram a entregar pizzas pra sobreviverem enquanto seus velhos amigos se esbaldavam... Isso deve tê-los deixado com muita mágoa... Eu nunca consigo me confortar com o fato de haver gente no mundo com mais motivos do que eu pra sentir mágoa... Sabe que eu adoro o Jack Bruce? Se o Eric Clapton é Deus, o Jack Bruce é o que? – disse Betsy.
- Eu também adoro o Jack Bruce, é um puta gênio mesmo. O Clapton é bom mas é um talarico – disse Castro.
- Eu também gosto de astrologia, e isso é algo muitas vezes associado aos valores hippies da minha geração, e estou usando esse termo no sentido pejorativo mesmo, pra enfatizar aquilo que as gerações que vieram depois não gostam. Eu sou duplamente de escorpião, sabe? Diante do que os astros me impõem eu acho até que sou uma pessoa controlada. Ser duplamente de escorpião significa que eu tenho ferrão. As pessoas têm medo da indiferença cósmica. Eu nunca precisei temer isso. Já sentia minha insignificância desde cedo, e muitas vezes, gostava dela. Ontem estava com insônia e fiquei pensando nas bandas que faziam sucesso na Europa e Japão, mas que não conseguiriam nem um copo d'água da torneira nos Estados Unidos... – disse Betsy.
- Quando a senhora tiver insônia novamente, pode pensar nos casos opostos a esses; Os que eram sucesso nos Estados Unidos e eram anônimos na Europa. Há quem considere isso um grande demérito do ponto de vista artístico. Os europeus que ansiavam por sucesso nos Estados Unidos queriam mais era o dinheiro dos americanos. Imagine ainda se em 1963 o 'Please Please Me' dos Beatles não tivesse emplacado e a gravadora não lhes tivesse dado a chance de continuar sob contrato e eles fossem entregar pizzas em Liverpool... – disse Castro.
- Recentemente fui visitar meus pais e descobri que meus discos antigos ainda estavam lá. Meu pai os conservou em caixas de supermercado, guardadas no quarto em que eu dormia. Tinha o primeiro dos Kinks, o Blue, da Joni Mitchell, aqueles primeiros do Roxy Music, da época em que o Brian Eno ainda fazia parte da banda... Eu economizava o dinheiro do ônibus e também do lanche da escola. Minhas idas até as lojas eram movidas pela ansiedade de ter contato com os discos que eu queria, e as voltas pra casa eram movidas pela ansiedade de ouvir aqueles que eu conseguia comprar. Eu procuro não ser saudosista, porque o mundo naquele tempo não era melhor do que é hoje. As pessoas também já eram uma bosta. A música dos anos 60 e 70 soa melhor porque, entre outras coisas, os artistas tinham uma arrogância espetacular. Hoje são podados pelos valores politicamente corretos. Tenho pensado muito na minha completa falta de perspectivas. É triste ter o corpo ainda vivo, mas já não ter qualquer desejo, esperança ou sonho. Quando ainda havia alguns resquícios do sonho hippie no mundo, mesmo depois de Charles Manson, algumas canções solenes do começo dos anos 70 falavam sobre a vitória da perseverança sobre a depressão, mas esses vagos sopros de positividade não podia durar muito mesmo, e foi nesse contexto que eu cresci. Em todas as sondagens que fiz na minha alma ao longo da minha vida, o que encontrei foram gavetas cheias de poeira simbolizando um passado vazio, que eu sabia que se transformariam num futuro triste e vago, e ainda assim, perigoso.
Enquanto conversavam, comiam algumas das magníficas empadas de frango preparadas por Betsy e ouviam o álbum 'Mystical Adventures', do Jean-Luc Ponty numa vitrolinha da Turma da Mônica. Castro gostava do fato de Betsy não amar o passado como 'os dias de glória'. Parecia querer viver apenas para libertar-se gradualmente da ignorância. Betsy se dizia uma atéia implacável, mas parecia triste e mística como uma católica praticante. E embora o presente daquela mulher não fosse o que ela sonhou anteriormente como um futuro de glória, ela ainda podia rir da ingenuidade do imaginário indie com o qual ela conseguia manter algum contato através de hóspedes jovens que eventualmente passavam temporadas em sua pensão e que usavam camisetas dos Stone roses, dos Charlatans e do Teenage Funclub. Tinha também muita vontade de chorar quando pensava em todo o resto.
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A felicidade seria poder desfrutar o luxo de ficar em casa com independência financeira. O conhecimento desse fato era instintivo. Nunca foi necessário ler isso em livro algum. Salinger conseguiu essa vitória com o sucesso de um único livro. Talvez ele tivesse vontade de sair da sombra desse livro famoso, mas nunca conseguiu. Para Castro isso jamais seria um problema.
O hábito de freqüentar as livrarias e sebos do centro da cidade foi adotado na época em que Castro trabalhava numa casa de sucos na Praça da República, antes mesmo de morar com Valdir da Chave. Grande parte da mágica desses lugares consistia no fato de haver sempre muito pouco tempo para gastar dentro. São Paulo o estava mastigando. E em Hernadarias não havia livrarias como aquelas. Castro sonhava com um emprego num sebo antigo e empoeirado. Queria passar ali tempo o bastante para que chegasse a sentir tédio. Gostava de pensar que os escritores famosos cujos nomes estavam impressos nas capas dos livros estavam mortos, em sua maioria. Era nesses momentos em que sua vida parecia valer alguma coisa. Pensava que a maioria daqueles escritores trocaria sua fama e fortuna para também estarem vivos. Entre os que ainda estavam vivos, muitos eram velhinhos decrépitos e reclusos.
Durante aquele período Castro tentava assimilar a mágica de se conciliar a vida de um intelectual com a de um trabalhador rude e braçal. Procurava conciliar também a rotina de um atleta com a de um boêmio. O tempo era escasso e a energia também diminuía com o passar dos anos, e embora Castro ainda tivesse 38 anos, já pressentia que seu período de aventureiro não duraria tanto tempo mais. Os golpes da vida eram então cada vez mais frequentes e violentos.
Nas livrarias e sebos do centro da cidade Castro podia proporcionar a si mesmo uma formação intelectual baseada em seu próprio discernimento. Parecia fácil descobrir quem eram os bons mestres da escrita. De qualquer forma teria que ler muito para adquirir cultura, e apesar de se sentir curioso com relação ao que era ensinado nas universidades, no fundo não confiava muito na capacidade dos professores que encontraria numa delas, ainda que estes ostentassem doutorados ou mestrados ou o que quer que fosse. Estava vivendo num país em que a qualidade da educação se assemelha à de nações pigméias, portanto a idéia de aprender sozinho não era nada ruim.
Castro poderia se aposentar por tempo de serviço aos 51 anos, quando finalmente completaria 35 anos pagando os carnês da previdência social como contribuinte autônomo. Seu pai foi quem o induziu a começar a investir nisso para que com pouco mais de 50 anos tivesse pelo menos a opção de parar com todas as atividades tenebrosas de gente comum para que ao invés disso pudesse ter uma vida naturalista e minimalista, sem muitos gastos desnecessários e voltando às origens simples depois de tantos anos vivendo numa cidade grande, se essa fosse sua vontade. Finalmente poderia ter a certeza de que o importante é ter uma casa isolada para criar cães e plantar sua própria comida, sua própria maconha e limpar sua própria piscina. Ficou fascinado com a idéia de adotar esse estilo de vida depois de ler um texto sobre a vida de Tolstói.
Ele sabia da existência de vários outros intelectuais desapegados ao materialismo comum aos humanos médios. Sabia que a melhor maneira de aproveitar o conhecimento que esses intelectuais deixaram registrado seria absorvendo-o num ritmo equilibrado, o que correspondia a levar uma vida que misturasse hábitos atléticos, boêmios e intelectuais. Boxe em dias alternados, sono e alimentação adequados dia sim, dia não. No resto do tempo, buscar histórias de vidas degeneradas quando não estivesse lendo sobre elas.
O primeiro desses tipos de hábito poderia ser atingido na sua correria diária ao trabalho e em partidas de futebol com seus conhecidos ou em longas caminhadas a esmo, aproveitando a iniciativa para evitar o transporte público. O segundo tipo serviria para que sentisse o sabor físico da vida, resumido grosseiramente a sexo e bebida. O terceiro seria saboreado nas ressacas, quando seus valores morais o fariam ficar deitado na cama lendo os livros que leva semanalmente para casa. Ler era um exercício de paz. Nesses momentos não havia domínios fechados que não pudessem ser investigados. O bar com o pior cheiro de urina podia ser um lugar revelador para Castro. Especialmente quando estava deitado em sua cama pensando nesses tipos de lugares pelos quais já passou, e pensando no destino dos infelizes que ali ele viu ou conheceu.
Para que alcançasse o que supunha ser uma paz verdadeira ele teria que focar firmemente o pensamento na imagem reproduzida em sua mente do pesadelo que certamente muitos humanos estariam passando naquele exato momento. Caso contrário, a paz momentânea daquele momento de relativo sossego não seria completa. Pensava nos mendigos molhados dormindo em cada um dos becos do centro da cidade. Pensava nos doentes terminais das UTI’s que clamavam por eutanásia. Nos girinos que Dirceuzinho jogava no aquário de sua tartaruga de estimação para serem devorados.
Era preciso aprender a lidar com sua personalidade multifacetada.
Leia amanhã o capítulo IV deste conto
• Escritor
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