domingo, 13 de maio de 2012

O presente de meu pai
* Por Juarez José Viaro

A mão direita de meu pai estendeu alguma coisa embrulhada num papel kraft sobre a mesa. Seus olhos verdes, brilhantes, me olharam fixamente enquanto de seus lábios esboçou-se um meio sorriso. Sua pele queimada de sol, cheia de sulcos que o tempo fincou, estendeu-se um pouco nas maçãs do rosto, acompanhando o sorriso. Para mim aquele meio sorriso era o suficiente. Meu pai era sério, nunca sorria, falava pouco, apenas olhava com seus olhos arregalados de censura, quando queria dizer algo de reprovação para os filhos.

Depois ele recolheu a mão, deixando o embrulho sobre a mesa e continuou a me olhar fixamente, rudemente, aguardando minha surpresa e curiosidade. Eu olhei aquele pacote, os contornos que o papel fazia para cobrir aquele objeto escondido, mas não imaginei o que continha. Para quê? O presente de meu pai já era suficiente pra me deixar feliz. Não precisava desembrulhar. Era bonito assim, guardado, envolto em papel kraft, num embrulho bem feito, com várias dobras e um pedaço de fita adesiva transparente que ultrapassava toda a parte dobrada do papel. Fiquei imóvel, deslumbrado com aquele gesto, enquanto meus olhos englobavam a figura de meu pai por trás da imagem do pacote, ora focando seus olhos verdes, ora focando a cor marrom do pacote sobre a mesa.

Passaram-se minutos, mas pareciam horas e eu fiquei imóvel, admirando o embrulho. Meu pai, ansioso, aguardava meu gesto para tocar o papel e tentar desembrulhar o pacote. Eu aguardava o tempo passar e poder usufruir do momento de ver meu pai, ver aquele pacote sobre a mesa e não conseguir decifrar nenhum dos dois. Acostumado que eu era com a imagem ameaçadora dele para meus irmãos, não concebia imaginá-lo diante de mim, sem motivo para me repreender ou castigar. Passava pela minha cabeça se era uma armadilha para eu estender as mãos para alcançar aquele pacote e ele me impedir. Ou seria mesmo um presente? Mas o que eu tinha feito para ganhar? Num segundo relembrei minhas últimas façanhas, tentando encontrar um motivo para minha premiação ou reprovação. Foi quando dei conta que havia ‘algo’ dentro do pacote e que eu só descobriria o que era, se o abrisse. Num impulso minha mão direita se desenganchou da esquerda, as duas presas entre as pernas, para tentar alcançar o pacote. Mas logo voltei à posição anterior das mãos. Se não sabia o motivo, como poderia querer o presente?

Mas se não fosse um presente? Se fosse um objeto encontrado em meio a minhas coisas, que havia embrulhado para eu não saber o que era e poder depois me repreender? Tentei lembrar-me de alguma coisa que eu tivesse quebrado, ou roubado de algum lugar proibido. Nada... Não me lembrava de nenhum objeto que tivesse desejado e não fosse meu. Então devia ser mesmo um presente. Como saber? Desembrulhando, claro. Mas eu poderia? Foquei novamente seus olhos verdes para descobrir a intenção que escondiam. Nada. Nem mesmo o meio sorriso me ajudava a descobrir o segredo.

De repente as duas mãos queimadas de sol, com veias azuladas e saltadas, se aproximaram novamente do embrulho e empurraram para mais próximo de mim. O pacote já havia passado da metade da tolha da mesa, e parecia maior. Devia ser mesmo um presente, concluí. Novamente minha mão direita se desenganchou da outra entre as pernas e concluí o gesto de tocar o pacote. Num instante meus dedos sentiram as arestas cobertas pelo papel e o peso que o pacote oferecia para ser levantado. Nada era familiar, nem o papel, nem o peso do pacote, nem suas arestas...

Parecia uma caixa, mas também poderia ser o próprio objeto embrulhado diretamente sob o papel. A outra mão também se movimentou até o pacote e procurou a ponta da fita adesiva. Nestes momentos eu conseguia usar com desenvoltura as duas mãos. Muitas atividades eu efetuava automaticamente com a mão esquerda. Não imaginava como poderia encontrar uma ponta transparente de fita adesiva com a mão direita, mais grosseira e sem jeito para gestos delicados. A esquerda fazia melhor a tarefa. Por sorte a ponta da fita foi encontrada logo e pude puxá-la toda sem rasgar o papel. Era um ritual que não poderia permitir falhas.

De repente o papel estalou com o movimento para ser desdobrado e se abriu como flor de maracujá no quintal. Um objeto negro, brilhante mostrou-se sob a folha. Seu desenho retilíneo lembrava a caixa de bolachas onde minha mãe guardava o material de costura, mas era menor, bem menor. Algo que podia caber na mão de meu pai, embora fosse grande o suficiente para eu agarrar com as duas mãos. Desembrulhei mais. Um estranho objeto negro, com uma tela prateada no centro que se curvava quase como um olho. Era tão lindo quanto indecifrável para mim. Era um presente, com certeza. Pois eu nunca tinha visto algo como aquilo, para ser minha punição por ter quebrado ou roubado de alguém. Não, pelo contrário, era novo, brilhava, estava inteiro. Era um presente de meu pai e para mim era um objeto de desejo inestimável. Era diferente de ganhar um brinquedo que vi numa loja e pedia para minha mãe. Ela comprava e minutos depois de brincar, eu já esquecia.

Mas este era diferente. Era um presente de meu pai para mim. E eu não havia visto em loja alguma nem com nenhum amigo de infância. Eu nem mesmo sabia o que era ainda. Olhei sob vários ângulos o estranho objeto, que tinha botões também prateados, em toda volta. Não atinava com a utilidade deles. Meu pai, abrindo mais seu meio sorriso, apanhou o objeto de minhas mãos. Suas mãos esfoladas seguraram o objeto negro, seus dedos seguraram uma ponta prateada que magicamente se espichou em forma de uma agulha imensa de crochê. Depois ele girou um botão minúsculo diante de seus dedos, que fez um estalido e de repente ouvi uma voz estranha e metálica. Era um rádio! Mas era minúsculo diante daquele que havia sobre a cômoda da sala, onde a família se reunia para ouvir a Hora da Ave-Maria. Aquele objeto negro era também um rádio! Devo ter permanecido por instantes com a boca entreaberta de surpresa. Era um rádio e era meu! Pois era um presente de meu pai.


* Jornalista e escritor. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.

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