quinta-feira, 10 de maio de 2012

Memória viva da cidade*

** Por Pedro J. Bondaczuk

Wim der Keuken passava os dias, chovesse ou fizesse sol, o ano todo, a perambular pelas ruas, praças, avenidas, parques e jardins de Rotterdam. Amava essa cidade. Tinha orgulho do seu povo, da sua cultura e de suas tradições. Empreendia, quase que diariamente, longos e intermináveis passeios na área do grande canal Nieuve Waterweg. Estendia suas perambulações pelos bairros mais distantes, sempre com o mesmo prazer e a mesma empolgação.


Nunca se considerou – pelo menos da boca para fora – uma pessoa solitária. Não, pelo menos, durante os dias, que nunca passava em casa, mesmo quando o clima não ajudava, quando chovia, fazia frio ou nevava. Quando alguém lembrava que uma pessoa que morava sozinha, que não tinha contato com nenhum parente e que, raramente, recebia visitas, só poderia sofrer de solidão, sorria, com complacência, como que dando a entender que a observação era rematada tolice.


-Solitário, eu?! Ora! Deixe de bobagens! Não sou uma pessoa comum! Sou cidadão do mundo! Nunca dependi e nem dependo de parentes para nada, muito menos para fazer-me companhia. Minha família é maior, muito maior, bem mais ampla e variada do que a sua. É esse povo de Rotterdam! Por isso, meu amigo, nunca me sinto, e nem poderia me sentir, só! –, costumava dizer, enfaticamente, em tom de discurso, sempre que o assunto vinha à baila.


Aliás, Wim conhecia, de fato, quase todo o mundo na cidade. Não importava se fosse homem ou mulher, velho ou criança, milionário ou mendigo. Nem importavam o sexo, a idade, a profissão ou a condição social das pessoas. Ninguém se surpreenderia se soubesse que era íntimo da própria rainha – embora o velho jamais tenha feito essa afirmação – tamanha a quantidade, e variedade, de seus amigos.


Wim nunca disse a ninguém que ao menos conhecia pessoalmente qualquer membro da família real. Não, pelo menos, em palavras, frise-se. Mas chegou a insinuar, em várias ocasiões, essa possibilidade. O estranho é que ninguém pôs em dúvida suas insinuações, no mínimo inverossímeis.


Wim testemunhou boa parte da história recente desse cosmopolita porto holandês em que nasceu. Viu algumas gerações nascerem, crescerem e se multiplicarem. Tinha memória prodigiosa, em especial quando se tratava de guardar nomes, fatos, datas e fisionomias. Nunca se confundia com alguém, mesmo que não o visse há anos.


Tratava essas pessoas com cordialidade, respeito e, sobretudo, familiaridade, como se o convívio com elas fosse constante, diário e sem interrupções. Uma das suas maiores virtudes era saber ouvir. E não se furtava nunca de aconselhar àqueles que lhe solicitassem conselhos.


Destacava-se, entretanto, como cronista de Rotterdam. A qualquer pergunta sobre as coisas e a gente da cidade, desfiava, em entusiásticas dissertações, fatos, cifras, personagens e detalhes. E essas preleções poderiam durar o dia todo, dependendo, é claro, da disposição do interlocutor em ouvi-las.


Detalhava cada episódio narrado, de forma tão peculiarmente saborosa e rica, como nenhum compêndio de história jamais conseguiria fazer. Sua loquacidade tornava-se maior, e mais pitoresca, quando a narrativa era acompanhada de generosos tragos de sua bebida preferida, o gim, nas costumeiras conversas que tinha em algum dos tantos bares da beira do cais. Os proprietários dos estabelecimentos, aliás, disputavam a sua presença, por motivos óbvios. Wim era um chamariz para a freguesia.


Não raro, era eleito como “tira-teima” de apostas, sempre que o assunto fosse Rotterdam. Sabia de tudo o que se passava na cidade. Wim virava juiz tanto no que se referisse a alguma controvérsia sobre esportes, notadamente o futebol (era sócio-fundador do Feyenord) envolvendo, por exemplo, alguma competição ocorrida há vinte ou trinta anos, quanto em dúvidas sobre arte, cultura ou até mesmo política.


Conhecia minúcias, particularidades jamais comentadas publicamente, da vida de determinadas famílias da cidade, e com riqueza de detalhes. Sabia de tudo e de todos, mas não de maneira superficial, como costuma acontecer com os que têm conhecimentos classificados de “enciclopédicos”.


Quando o assunto era a história de Rotterdam, Wim se excedia. Lembrava-se, por exemplo, com indisfarçável horror e visível indignação, da devastação sofrida pela cidade durante a Segunda Guerra Mundial, quando a aviação alemã reduziu a um imenso monte de escombros bairros inteiros, com seus casarões, jardins e praças, especialmente o centro e a zona do porto.


Sentia, no entanto, enorme orgulho da capacidade de trabalho e de mobilização do povo. Da miraculosa obra de reconstrução empreendida pela população, tão logo o país foi libertado da presença dos invasores. Jamais se esqueceria dos sentimentos que nutriu durante a guerra, de ódio, multiplicado pela impotência para evitar, de alguma forma, tamanha devastação, notadamente a causada pela Aviação nazista, com suas arrasadoras bombas.


Como desejou, então, punir os vândalos por tamanho atrevimento! Mas, como todas as pessoas de bom-senso daquele tempo, limitou-se a engolir a cólera. Pelo menos publicamente. Não havia outro jeito. O inimigo era muito superior em soldados e armamentos. Reagir seria loucura, suicídio até. Pelo menos ostensivamente, de peito aberto, em combates convencionais.


Manteve-se discreto, aparentemente passivo, com a boca fechada e arredio, para resguardar a liberdade, a integridade e a vida, próprias e da família. Tinha que ser prudente, pois os delatores estavam por toda a parte. E os nazistas não admitiam nenhuma rebeldia ou qualquer tipo de hostilidade. O mínimo ato hostil era punido com fuzilamento ou com o envio para campos de concentração.


Dizem que Wim integrou um pequeno, mas muito ativo grupo de resistência. Nunca se soube se de fato participou ou não dessa heróica empreitada. Ele jamais confirmou, ou desmentiu, essa participação. Contudo, ela era tida como real em toda a cidade, até pelos seus precedentes.


Contavam-se, inclusive, a boca pequena, supostos atentados de que teria participado, inclusive um que causara a morte de perto de uma centena de soldados alemães e que valera duríssimas represálias contra toda a população. Eram, no entanto, histórias com foros de lendas, sem possibilidades de comprovação.


Wim acompanhou, atentamente, com muito orgulho, a penosa tarefa de reconstrução da cidade. Não tardou, por exemplo, para que um novo porto, mais moderno e funcional do que o destruído pelas bombas nazistas, surgisse das ruínas do anterior, como que da noite para o dia. Bairros inteiros ressurgiram literalmente das cinzas, como a mitológica “fênix”.


Logo, as ruas voltaram a se encher de pessoas jovens, alegres, bonitas, dinâmicas e vigorosas, dispostas a esquecer os horrores da guerra e tocar a vida em frente. Wim viu, sobretudo, a alegria voltar à Holanda, com a reabertura dos cafés, dos cinemas e dos teatros, reconstruídos em tempo recorde.


Testemunhou o surto de progresso, poucas vezes visto em outras grandes cidades européias que passaram pelo mesmo drama, de Rotterdam. Conhecia essas histórias heróicas tim-tim-por-tim-tim, nos mínimos detalhes. E gostava de contá-las, sempre acrescentando novo colorido, de maneira incansável. E nunca lhe faltaram ouvintes. Wim era tido, e com razão, até mesmo pela imprensa local, como a “memória viva” de Rotterdam. E orgulhava-se disso.


• Do romance, inédito, “O Sinterklaas de Rotterdam”


** Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Um comentário:

  1. Então Wim não conta de si, apenas dos outros? Pois se tem boa memória, é só lhe perguntar se foi mesmo da resistência e se participou do atentado a bomba. Matou cem pessoas? Morte coletiva, de qualquer lado, é um horror. Mesmo tanto tempo depois a mim causa mal estar saber, mesmo sendo coisas do seu heroi. Interessante usar nomes locais de ruas, praças e avenidas, além do cais. É preciso muita pesquisa para não passar informação errada. Você já esteve em Rotterdam?

    ResponderExcluir