Ferramenteiro
* Por
Marco Albertim
Vivíamos numa sala com
pouco mais de vinte metros quadrados. Éramos quatro. Não fosse o torno de três
metros de comprimento, a plaina do mesmo tamanho, em cada uma das paredes
paralelas; não fosse ainda a bancada de madeira no meio, onde as ferramentas de
uso manual se espalhavam, haveria espaço para que nos movêssemos sem contrair
os ossos.
O bastante para evitar
que, todas as vezes que saíamos para o salão da produção, alongássemos as
espáduas e os quadris, como púnhamos óleo nas juntas das máquinas para não
emperrarem. Sem falar no birô do encarregado da manutenção, tão pequeno e baixo
quanto ele; o encarregado encolhia-se sentado entre o birô e a parede,
estudando projetos de ferramentas que tínhamos que executar. Quando não isso,
enchia os olhos miúdos folheando revistas de mulheres nuas; um olho em coxas
lisas e grossas, outro no cenho pregado de tensão de nossos juízos, com medo de
desbastar um milímetro a mais, e assim pondo a perder peças de aço, todas
cortadas ou limadas conforme medidas de precisão.
Quando o torno e a
plaina funcionavam simultâneos, soltavam um ruído choco. Os dois só tinham
utilidade, no corte de aços diversos e ferros ordinários; para isso, outra
ferramenta era instalada na caixa de navalha respectiva. O bite, como
chamávamos, era amolado no esmeril elétrico. Dava gosto vê-lo com a extremidade
afiada, tinha o porte aristocrático de uma arma de uso raro. Fixo na caixa,
infligia desbastes simétricos no aço ou no ferro. Para não esquentar muito, pingávamos
óleo da almotolia entre o bite e o metal sob seu corte; em seguida,
despejávamos água de um caneco de flandres, o mais reles de todos os
repositórios da oficina. Uma fumaça espessa subia da cintura para cima. Não
fechávamos os olhos, posto que o negror dos óleos há muito encrespara os pelos
de nossas pálpebras; acima das membranas, tornaram-se filtros. Os cabelos,
sabíamos disso e nos acostumamos, ficavam entranhados da neblina ácida dos
lubrificantes.
O mais novo de nós era
o ajudante. Submetera-se ao teste de, com o uso de uma lima de dentes finos,
desbastar um cilindro de aço cru, até deixá-lo com seis lados, sem perder o
contorno de cilindro. Fez o teste fumando, misturando no bico do cigarro, as
rebarbas oleosas caídas do aço. Não se importou, posto que seria logo logo um
ferramenteiro como todos ali, no uso de macacões tisnados de sujeira, compactos
de óleo no couro fino de cada um.
Para ser ferramenteiro,
aceitava submisso a imposição de trabalho noturno, mediante a remuneração
extra, inda que pequena no contracheque de ajudante. Os mais antigos,
ferramenteiros de mãos duras, tratavam-no com o respeito próprio de quem dá as
boas-vindas a quem opta com paixão pelo ofício.
Depois de um ano, após
refazer a peça sextavada e instalá-la no interior de outra com o mesmo
contorno, encheu o peito de orgulho no macacão onde esfregava com estudada
indiferença, as mãos gordurosas de suor e óleo. Acoplou uma peça na outra. O
encarregado achegou a peça nos seus olhos miúdos. Viu, mirando-a na mesma
direção da luz opaca da sala, que de um lado a outro dos seis lados da peça,
não havia sinais de luz. O encaixe fora perfeito. O ajudante foi promovido a
ferramenteiro.
Nos seis primeiros
meses de mudança na carteira de trabalho, continuou sendo o único a ser chamado
a cumprir com o horário extra da jornada. Cumpriu-o sem afetação, com a
segurança de que nenhuma ferramenta ali, na bancada de madeira estropiada, nas
prateleiras e nos armários, era estranha a seus sentidos no domínio da função.
O forno, um armário de
aço com duas portas, uma em cima e outra em baixo, ficava do outro lado do
salão da produção. Na porta superior, o aço desbastado era posto em brasas para
ser temperado; na de baixo, o carvão mineral. Ao lado, no chão, o depósito de
madeira onde o carvão era posto. O forno passava uma semana, às vezes duas sem
ser usado; tempo correspondente à formatação de cada peça. Para chegar ao
local, atravessava-se toda a produção. O passeio distraía, apesar do barulho de
prensas, soldas queimando no garfo elétrico, cortes de flandres de ferro e de
barras de aço.
O calor em frente ao
forno e o isolamento da guarita onde era instalado, tornavam seu uso no pior
exercício do aproveitamento do aço. O novo ferramenteiro, esquecido das horas
extras, foi atraído para o fogo denso do forno. Até então, usara-o para
temperar as peças sem o revenimento. Deixava o aço fremir na luxúria cegante;
mas o revenimento, ou seja, requentá-lo sem deixá-lo em brasa, a
responsabilidade ficava com o ferramenteiro mais velho. A preocupação era a
mesma ou igual à de desbastar o metal na plaina, no torno ou na lima, sem
exceder os cortes pré-traçados. Assim ocorrendo, perdia-se o trabalho, o aço ia
para o lixo.
O novo ferramenteiro,
reparando na peça retangular de aço, feita por ele mesmo no uso da plaina, da
lima, deixou-se cegar nos olhos, no gozo do juízo fruindo a vermelhidão do
fogo. Com o garfo de cabo comprido, retirou a peça do forno, banhou-a no tonel
com água, como de praxe. Levou-a de volta ao forno. Inebriado com o fulgor da
quentura, gozou além da conta do que sua lavra seria capaz.
*Jornalista e escritor. Trabalhou
no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos
para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional
de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho
Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas
“Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de
contos e um romance.
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