* Por Lêda Selma
Lá pras bandas do Rego do Padre, sim senhor! Foi lá que ela, a amaldiçoada, se amoitou, sorrateira que nem serpente, num descaro de botar medo.
Urandi nem tinha ainda pegado no sono – apenas, cochilava baianamente, como se fizesse a sesta noturna, após um bom vatapá – quando a enxerida chegou das sombras. Com acesos olhos de fogo e vestidura de um negrume abissal, depôs a ossatura sobre o fio de água morna que sangrava do rego (que, não se sabe como nem de onde, brotou, um dia, nos fundos do quintal da casa do padre), rodopiou como se testasse o próprio equilíbrio e esperou que o silêncio descarnasse a solidão para aí visitar Medrolino, sempre orgulhoso de sua competência e de suas funções de sacristão. “Sacristão vitalício”, gabava-se.
A mal-vinda lavou-se, como se quisesse livrar-se de seu próprio cheiro, fitou-se na risca d’ água que a espiava trêmula (e, já a tal altura, gelada), ajeitou os cabelos esfiapados, como se precisasse melhorar a aparência, e caminhou ladeira acima. Na mão esquerda, uma ceifa enferrujada e de corte afiado.
Medrolino, fazia pouco, acometera-se de súbito mal-de-engasgo, logo após a última colherada de um sarapatel apimentado que, escarreirado, escapou pela contramão e o fez tossir tosse graúda e espichada. E ainda com a voz sumida e o pasmo do susto entalado, resolveu agradecer a ingerência divina antes que Deus confundisse demora com ingratidão:
– Agradecido, muito agradecido, meu Senhor do Bonfim (do Bonf... Hum... melhor trocar por Bom Jesus da Lapa. Questão de segurança!).
Ainda com restos da frase saracoteando na boca, o sacristão ouviu batidas esquisitas na porta e outras tantas em seu próprio peito, enquanto um calafrio fazia-o tremer feito graveto seco à revelia de lufadas de vento.
– Boa-noite, senhora, procura alguém? – indaga Medrolino, ao entreabrir uma fresta, já assustado com a visão horripilante que lhe salta à frente (o que ela tem na mão, uma foice, Senhor do Bonf...? Melhor, da Lapa...).
– Boa-noite, posso entrar e acomodar também minha acompanhante? A demora é miudinha, pois estou a trabalho e ainda há muito serviço a ser executado esta noite. Falando nisto, o senhor é o sacristão, pois sim? Olhe, estou aqui para dar-lhe as boas-idas...
– Boas-idas...? Boas-vindas, a senhora quis dizer – interrompeu o embasbacado sacristão, fingindo-se de desentendido para confundir a malfadada visitante.
– E então, falo com o auxiliar paroquial, o sacristão?
– Sacristão... Não senhora. Nunca fui. Nem quero ser. Por total falta de vocação.
Capricho de Deus, sabe? E se é assim que Ele quer, quem sou eu pra contrariar tão santas ordens ou para provocar calundu no Próprio?
– Me disseram que o senhor...
– Disseram errado. Mentiram. Se enganaram. Nem sacristão, nem auxiliar! Nenhum dom pro ofício, entende? Peladinho de talento, peladinho. Que nem alma depenada. Ah! que cabeça a minha: se achegue, se acomode e venha provar do meu sarapatel e beber um golinho de leite-de-anjo (cruz credo! Não é bom falar em anjo, tal lembrança pode empolgar mais ainda a nefasta), quer dizer, um gole da calibrina...
– Leite-de-anjo...! Se eu apressar o serviço e o senhor der sorte de pegar um vôo sem escala, ainda hoje poderá beber leite com eles...
– Vôo? Agradecido. E leite, nem o de mãe. Recomendação médica, entende?
– Não posso desperdiçar tempo... Mas, vou aceitar seu convite! Uma provinha só.
Medrolino pensa rápido. Sarapatel fervendo de pimenta à fatídica senhora. E uma talagada de calibrina. Até ela se estrebuchar, achará uma saída. Assim, pensamento em ação e a dama das trevas, com pimenta a lhe sair por todos os ossos, cambaleia, sufocada, de um lado para o outro, até arriar.
Exultante com a primeira fatia da vitória e com os pensamentos ainda em correria, resolve livrar-se da traiçoeira. Com as duas mãos, puxa firme os esqueléticos braços da desconjuntada figura, recolhe tudo em um saco de estopa e coloca-o na carroça que despenca ribanceira abaixo.
– Arre, desta me safei! Por um triz, mas me safei.
Aliviado, liga o rádio, ensaia um arremedo de axé, espalha passos tortos pelo chão, como se dançasse com bela dama. Toma uma talagada da tal calibrina, desaba sobre o decadente sofá e dorme feito um morto, até que, já beirando a meia-noite, sobressalta-se com batidas na porta. A contra-gosto, vai atendê-la. Encantado com a formosura da visitante, uma mulher de silhueta esbelta, cabelos e pele cor de tamarindo, escancara-lhe a porta.
– Vim fazer uma visita por estes lados e me perdi. Então, ouvi esta música gostosa... O senhor é o sacristão, estou certa?
– Certíssima. E com muito orgulho. Pra mais de trinta anos. Por excesso de vocação. Um capricho de Deus. E me perdoe a desmodéstia: o melhor.
– O melhor... para mais de trinta anos... Hum...!?
– Que tal um sarapatelzinho supimpa e um golinho de calibrina? Preparo em meio tempo. Uma mão lá, outra cá. E até lhe faço companhia.
– Sem pimenta, por favor. Ah, não bebo em serviço!
De repente, preocupada, a mulher olha o relógio e, desistindo da última colherada da saborosa iguaria, levanta-se, estende a mão ao rapaz e lhe sorri uma despedida altiva:
– Obrigada e até logo. Ah, bom sono! Com os anjos, de preferência...
– Agradecido. Oxente, até logo...?! Hum... melhor, sem os anjos!
O moleque Traquinildo, malino e curioso, foi quem avisou o padre e os vizinhos, após olhar pela janela e se deparar com Medrolino, todo arroxeado, olhos enormes e bacentos, boca arregalada e mãos crispadas no pescoço, como se tivesse querido arrancá-lo. No chão, ao lado da caneca, rastro molhado de pinga e um velho prato esmaltado, com escoriações generalizadas, cheirando ainda a pimenta fumegante.
Ninguém reconheceu a mulher esbelta, de cabelos e pele cor de tamarindo que, surgida do nada, cochichou ao padre em tom estranho e misterioso:
– Mal-de-engasgo, descambado em morte. Um tal de sarapatel, o assassino. O danado empacou que nem jegue em refugo: nem ia, nem vinha. E o pobre do sacristão... Ah! foi-se...
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
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