sábado, 11 de agosto de 2012

Getúlio, um chá, um segredo

* Por Eduardo Murta

Getúlio me visita à mesa do café nesta manhã cinzenta de agosto. Traz o charuto à boca e um olhar enigmático. Triste e bêbado em compaixão. Veio para dizer algo, penso. Mais que dizer. Revelar. Estende as mãos miúdas em direção à xícara e, com o franzir da testa e os olhos à garimpeiro, deixa escapar a escolha. Ah, o velho chá! Como me esquecera.... Meia taça, sem açúcar e água apenas morna. Bebe em silêncio, segue em silêncio e sorve como se estivesse se alimentando daquele silêncio. Só o choque da xícara sobre o pires o quebra.

É o mesmo Getúlio de tantos anos atrás. Chega num conjunto cáqui, ao estilo militar, e um detalhe, mais que qualquer outra coisa, é que chama a atenção. Os dedos roçam a mesa, o charuto muda de mãos, um pouco trêmulas, e me espanto. Falta a aliança de casamento, vislumbro, no vai-e-vem das mãos que, vagarosas, alisam os cabelos. Parcos e quase brancos. A aliança pesada, em ouro nobre, com o nome da mulher e a data do casamento, não está ali.

Getúlio nota o ar de surpresa com a miudeza revelada. Mas não se abala. Porta-se como se estivesse ali justamente por conta deste singelo detalhe. E dá a impressão de que, no fundo, não sabe é por onde começar. Arqueia a cabeça, apóia-se nos joelhos, ajeita a cadeira e volta a fixar os olhos na ansiedade em que me transformei. Sirvo-lhe uma nova taça de chá. E espero, mudo, por um gesto revelador.

Os braços se movem em direção ao peito, onde Getúlio guarda mais que a marca do tiro que o fizera, como ele mesmo registrou, sair da vida e entrar para a História. No peito Getúlio carrega ainda um segredo, mas não demorará a desfazê-lo. Do bolso saca um envelope amarrotado, gasto e amarelado. E o estende em minha direção. Há um nome e um endereço de um bairro tradicional de Belo Horizonte. O nome de uma mulher. Chama-se Isaura. Sem terminar o café, compreendo a missão. Me ergo em seguida para ganhar as ruas rapidamente. Busco uma tal Isaura, que mora numa rua tal e não se libertou, como Getúlio, do tiro que ecoou pelo Palácio do Catete naquela manhã de agosto. Não foi difícil encontrá-la. Miro uma mulher com o olhar perdido, à janela. É Isaura. Ela ergue o véu negro, me devolve o olhar, numa meia cumplicidade de quem já sabia o que me levara até lá. Um pequeno e ressecado jardim nos separa.

Os últimos passos são aflitos. Mas não para Isaura, que me espera imóvel. Numa salinha apertada, escura, me recebe. É uma mulher angustiada, e não o disfarça. Logo lhe estendo o envelope amarelado e gasto. Mãos trêmulas o agarram e o levam ao peito. Isaura respira agora em descompasso. Um cheiro de naftalina e sua roupa negra reforçam a sensação de sufocamento. A data é 23 de agosto de 1954: "Minha amada Isa, .... já me decidi a sair da vida para entrar na História'. Declarações, confissões e pedidos de perdão se seguem, até o fecho: "Dá-me tua mão, vem comigo...".

Espero, sem uma palavra, pela reação. Rugas, lembrando cicatrizes no rosto de Isaura, alinhavam um dilema que seria logo quebrado: "Não. Eu não o amava". Antes que saísse, Isaura coloca sua mão, espalmada, sobre a minha. Deixa deslizar uma aliança. Grossa, em ouro nobre. Examino. O nome é de outra mulher. Me viro pela última vez antes de chegar à rua. À janela, Isaura já não usa mais o véu. E sorri ao fazer um tímido gesto de despedida. Desço a rua sem olhar para trás.

Agora penso em Getúlio. Subo com pressa as escadas e me detenho, ao tentar imaginar o que dizer. Como dizer. Ou como não dizê-lo. Getúlio se levanta assim que abro a porta, com olhos que devoram cada gesto meu. Abro um sorriso, lhe aceno positiva e lentamente com a cabeça. E ele parte como chegou. Em silêncio. Nas manhãs cinzentas de agosto ainda rezo por sua visita. Sempre com um chá morno à mesa e a ligeira impressão de que virei, eu, o refém de um tiro que ecoou pelo Catete, atravessou a História e entrou em minha vida. Uma Isaura, quem sabe, subirá aquelas escadas para um dia me socorrer. Tenho fé.

• Jornalista, 42 anos, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado no dia 8 de maio passado, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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