* Por Mara Narciso
A primeira vez em que eu vi aqueles olhos azuis foi no consultório dele. Em 1980 era possível deixar as portas abertas, as costas viradas para a Avenida Carangola, no centro de Belo Horizonte, e se distrair lendo livros. Era coisa de meio-dia. Cheguei encabulada, médica recém-formada no interior, e da porta chamei pelo seu nome. Ele se virou simpático, cheio de sorrisos, e levantando-se, veio até mim, e só então dei de frente com os seus límpidos olhos azuis. Dr. José Diogo Martins mandou-me entrar e me sentar, assim que ouviu o nome do seu colega de hospital, Dr. Hermann, que havia me dado seu endereço. Estava insegura, temerosa numa cidade estranha, apenas com uma certeza: queria fazer residência médica de Endocrinologia, a especialidade dele. Os hormônios em mínimas doses e seus enfurecidos efeitos me maravilhavam. E nunca deixaram de fazê-lo.
Ofereceu-me seus préstimos e convidou-me a participar, no dia seguinte, de uma corrida de leitos em sua enfermaria, que é a discussão de casos ao pé do doente, entre médicos professores e médicos residentes. Estava tão perdida, que custei a me decidir, mas ele me explicou que eu poderia seguir o serviço de Endocrinologia, mas seria melhor fazer antes um ano de Clínica Médica. Fui trabalhar na enfermaria ao lado, que adorava, mas participando de grupos de discussão na Endocrinologia no final do dia.
Findo o ano de estudos da Medicina Interna, concorri com 19 médicos e fui classificada, para, enfim começar a residência de Endocrinologia, que duraria mais dois anos. Foi um período difícil, porém, minimizado pela grandiosidade de espírito, paciência e bondade do grande mestre Dr. Diogo.
Sorriso acolhedor, distribuindo uma atenção que valorizava o outro, sua maior arma era a compreensão. Entendia não apenas o ser humano, com respeito pelos que sofriam, como também brilhava na questão científica, no conhecimento profundo, direcionando nossos estudos. Conseguia destrinchar os casos clínicos de forma pedagógica, fazendo o complexo ficar compreensível e tratável. Assim, diante de pacientes graves, com manifestações parciais, exames precários, necessidade de testes indiretos, únicos disponíveis para decifrar o caso na época, Dr. Diogo traduzia de tal forma, que apaziguava nossos corações. Com humildade, aceitava as considerações dos demais. Nos dois anos que convivemos não o vi ser rude e nem passar por cima de opiniões. Manso, vendia a imagem do pai carinhoso e compreensivo, de forma natural.
Quando em setembro de 1981 o Ministério da Educação e Cultura, MEC, obrigou os hospitais a pagar os médicos residentes, inviabilizou boa parte dos serviços, e nossa residência foi dissolvida virando “estágio” para driblar a lei. Entramos em greve, nos fazendo perder 81 dias de aprendizado. Ficávamos na porta da Santa Casa, em piquete, e uma vez Dr. Diogo passou para olhar os doentes e nos chamou para o trabalho, porém sem querer desmoralizar o movimento.
Terminado o terceiro ano de residência, mudei-me para Conselheiro Lafaiete. Dr. Diogo, sempre com espírito científico e querendo nos ajudar, distribuindo o seu saber, organizou um grupo de estudos. Durante um ano, na quinta-feira, trazíamos casos do consultório para, durante duas horas ouvirmos a opinião prudente do nosso mestre. Tudo se clareava na luminosidade dessa pessoa ímpar, que recebendo apenas nosso reconhecimento, doava experiência, gastando seu horário de almoço para ensinar suas oito ex-residentes. Na volta para casa, enquanto refletia sobre o feliz aprendizado, eu escrevia um relatório sobre o que tinha sido discutido.
Passada essa fase, continuamos a nos ver nos encontros e congressos médicos. Dr. Diogo não falava inglês e nas aulas internacionais usava o fone de ouvido da tradução simultânea. Sempre esteve acima do peso, e acabou desenvolvendo diabetes, doença que é o centro da nossa especialidade. Dedicou-se entusiasticamente a Medicina Psicossomática, atingindo sua mais alta graduação. Nos congressos de Endocrinologia, na sua maneira peculiar, mesmo não sendo grande orador, nos apresentava palestras memoráveis, falando das nossas dores, feridas e sofrimentos, e suas manifestações físicas. Tantas vezes o ouvi falar da ferida narcísica, e isso tanto me impressionou que ficou marcado em mim. “Quem sabe apenas Medicina, nem Medicina sabe”, escreveu ele no prefácio do meu livro “Segurando a Hiperatividade”. Assim era Dr. Diogo.
Uma vez, estando grávida, fui visitar Montes Claros. Devido ao calor, bebi mais água que o habitual e na volta, tive de parar algumas vezes para ir ao banheiro. Imaginei estar com diabetes. Fui direto me consultar com Dr. Diogo, e quanto mais água bebia, mais urinava. Seus mansos olhos azuis me falaram: “você pode beber toda a água que você quiser. Não há mal algum nisso”. A sede passou como por encanto. Dr. Diogo entendia a alma humana como poucos.
No começo da vida profissional, quando um caso difícil esmagava a minha segurança, um telefonema salvava tudo. De uma forma límpida, Dr. Diogo clareava o obscuro e apontava os caminhos, com seu raciocínio fácil e sugestões luminosas.
Víamos-nos com frequência nos congressos, e assim pude conhecer a sua doce esposa Ana, com a qual foi casado por quase 50 anos e seus três filhos, sendo dois deles endocrinologistas. Sua filha Diana, residente em Salvador, disse que o considera “dócil, carinhoso, afetivo, conselheiro, acolhedor e administrador de conflitos. Exagerado, às vezes”. Só posso concordar.
O Dr. Diogo usava a palavra como uma varinha de condão e com ela operava milagres. Soube que ele partiu em abril. No dia do amigo homenageei meu eterno professor, de inesquecíveis olhos azuis, numa rede social. Desconsolados, meus olhos castanhos choram de saudade.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/
Que bela homenagem, Mara. Onde quer que esteja, o Dr. Diogo se orgulha da discípula. Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirMuita tristeza e saudade. Teria outro tanto para dizer, mas fiquei só nisso. Falei dos olhos e não falei do sorriso, tão fácil e frequente. A característica maior era mesmo a bondade. obrigada, Marcelo, pela visita.
ExcluirDoces lembranças Mara Narciso... E são maravilhosas quando se percebe a admiração verdadeira nas suas palavras, amorosamente colocadas...
ResponderExcluirParabéns!
Abraços.
Nunca recebi uma negativa em todas as vezes que precisei dele. Equilíbrio, sabedoria, alegria, paciência. Foi bom o privilégio de conhecê-lo e conviver com ele. Dr. Diogo era da idade da minha mãe, e tinha sido colega da faculdade da primeiras ginecologista de Montes Claros, Dra. Maria de Jesus. Obrigada pelas suas palavras, Marleuza.
ExcluirPosso imaginar a emoção que sentiu ao narrar estas linhas, Mara. Certas pessoas nos deixam marcas profundas, seja pelo caráter, sensibilidade, bondade, carisma que exercem sobre nós.
ResponderExcluirPessoas queridas e que admiramos jamais serão esquecidas. E você compartilha conosco - seus amigos - esta singela homenagem, lembranças que nunca se apagarão.
Eu recebi de você por email esse texto. Mas dexei para comentar quando publicasse aqui no Literário, pois deduzi que assim o faria.
Grande Abraço!
Já se passaram 4 meses da morte. Sabia que tinha de escrever algo. Foi bom que eu tenha conseguido fazer isso. Agradecida, Edir.
ExcluirMara,
ResponderExcluirbela história .
Quem dera todos tivessemos, na nossa formação, um
Doutor Diogo. Interessado e conhecedor da alma humana.
Imagino que a partida do seu professor machucou . A saudade será eterna.
E mais :Acredito que tenha chorado durante ou ao terminar seu texto.
Maneira bonita de falar também da sua especialidade.
Beijão
Os hormônios são substâncias fascinantes, que de certa maneira demoraram a ser descobertos, pois até 1970 praticamente não eram dosados, e apenas seus efeitos eram mensurados. Diogo, além de apaixonado pela Endocrinologia, tinha outra paixão, a Medicina Psicossomática. No final ele tornou-se um psicanalista. Obrigada, Celamar.
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