Pedra no inimigo comum
* Por Urda Alice Klueger
Tenho
até que marcar o dia para nunca esquecer: 02.03.2004. Vi as
imagens no Jornal do Almoço e ainda estou rindo de orelha a orelha.
Era uma coisa que se esperava, que se sabia que viria, mas não
pensava que seria tão já: sunitas e xiitas unidos, no Iraque,
tacando pedra em soldados estadunidenses armadíssimos, que tiveram
que fugir da multidão, abrigar-se no seu jipe de guerra e dar no pé.
Vamos tentar entender o que
são sunitas e xiitas – ambos são muçulmanos. É a mesma coisa
que entre os cristãos: há católicos e protestantes. Daí você vai
dizer que com os cristãos é diferente, que católicos e
protestantes não se matam – que bobagem, meu amigo! O fato de que
aqui no Brasil as disputas entre as diversas seitas cristãs ficarem
a nível de pequenas discussõezinhas bíblicas e grandes desprezos
de vez em quando não quer dizer nada. Até hoje católicos e
protestantes se matam, como é o caso da Irlanda do Norte, e se
formos procurar exemplos na História, ao invés de uma crônica sai
um compêndio. Vamos a um deles: a Noite de São Bartolomeu. Ela
aconteceu na França em 24 de agosto de 1572. Começou pelas
Tulherias, que era então o palácio real, e estendeu-se por mais
algumas semanas, alastrando-se por todo o país. Num instante se
mataram 10.000 huguenotes, que era como se chamavam os protestantes
de lá, e há centenas e centenas de relatos dos requintes de
crueldade com que os cristãos tratavam os outros cristãos, tipo
assim:
- “ Achei um bebezinho aqui
na torre! Levantem as lanças, para ver quem consegue espetá-lo
primeiro, quando eu o jogar!”
Foi bem barra pesada o que
aconteceu com os cristãos huguenotes na França do Século XVI, mas
é só um exemplo. Há pencas de outros, onde cristãos mataram
cristãos em nome de Jesus. E há muçulmanos que matam muçulmanos
em nome de Alá. Tudo a mesma coisa.
Então, temos os sunitas e os
xiitas, as duas principais facções lá do mundo muçulmano. E
o Iraque vinha sendo governado por um sunita chamado Saddam Husseim
fazia muito tempo, o que quer dizer que os sunitas estavam por cima
da carne seca, enquanto os xiitas tinham que amargar a necessidade de
ficarem quietos se não quisessem se incomodar. Até que um cara
chamado Bush II, mais conhecido como Mister Cachorro Louco, resolveu
ir lá e se apossar do petróleo do Iraque, e foi lá e
bombardeou tudo, e achou que estava mandando no país. É claro que
não é assim que se domina nada, ainda mais um país com uma cultura
de tantos milhares de anos. Os católicos e os protestantes de lá,
isto é, os sunitas e xiitas, num primeiro momento tiveram que ficar
quietos e engolir a invasão – até passaram a se reorganizar, os
xiitas achando que poderiam voltar, um dia, ao poder que um dia já
fora deles, e ressuscitaram suas tradições, seus rituais e seus
dias santos que estavam proibidos, e voltaram a se pegar de pau com
os antigos adversários, os sunitas, já pensando e programando o
futuro quando conseguissem correr com o Mister Cachorro Louco. Até
que chegou o dia 02.03.2004.
No dia 02 de março de 2004 os
xiitas estavam comemorando um dia santo seu que estivera proibido
quando a turma de Saddam Hussein governava. Como alguns xiitas vêm
colaborando com o invasor que quer o petróleo, seus opositores não
tiveram dúvida: fizeram uma série de atentados aproveitando o dia
santo, e acabaram morrendo perto de 140 pessoas. Grande pânico no
Iraque, os feridos se contavam às centenas, e na praça pública os
católicos e protestantes de lá tentavam enfiar o dedo nos olhos uns
dos outros, e a confusão estava grande. Foi então que o jipão do
invasor chegou, e os soldados estadunidenses cheios de armas
poderosas resolveram saltar e botar ordem na casa. Que aconteceu?
Quando avistaram o verdadeiro
inimigo, xiitas e sunitas esqueceram as diferenças e se lembraram de
que Alá era um só, e, unidos, juntaram as primeiras pedras que
encontraram, e saíram todos correndo atrás dos soldados, botando a
correr o inimigo comum.
É, seu Bush, seu Bush, ainda
estou rindo até as orelhas! Foi uma data inesquecível!
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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