O homem Lula nesta sexta-feira santa
* Por Urariano Mota
Vocês perdoem a tentativa desta homilia em plena sexta-feira santa. Perdoado, devo dizer:
“Pilatos
mandou então flagelar Jesus. Os soldados teceram de espinhos uma
coroa, puseram-na sobre a sua cabeça e o cobriram com um manto de
púrpura. Aproximavam-se dele e diziam: Salve, rei dos judeus! E
davam-lhe bofetadas. Pilatos saiu outra vez e disse-lhes: Eis que
vo-lo trago fora, para que saibais que não acho nele nenhum motivo
de acusação. Apareceu então Jesus, trazendo a coroa de espinhos e
o manto de púrpura. Pilatos disse: Ecce homo! Eis o homem!” (Jo
19,1-5).
Eis o homem! Quando Lula se despedia da
Presidência, esteve no Recife. No discurso desse dia, ele
falou:
“Então resolvi fazer as caravanas da cidadania.
E comecei fazendo a primeira caravana percorrendo o trajeto que a
minha mãe percorreu com oito filhos, saindo de Caetés até a cidade
de Santos, em São Paulo. Parando em cada cidade, conversando com as
pessoas. Depois eu percorri 91 mil km de carro, de trem, de ônibus,
de barco. Para conhecer a cara, o jeito, o contar da piada, da graça,
o cantar do povo pernambucano, o sofrimento do povo brasileiro. E
isso me deu uma dimensão do Brasil que eu queria
governar”.
Naquele dia, no meio da multidão,
havia cadeirantes pedido passagem, senhoras velhinhas apoiadas nos
netos, indivíduos cegos a tatear com suas bengalas, jovens, muitos
jovens, negros, muitos negros, negros na pele e no peito, que ouviam
sérios, com absoluta atenção o presidente que lhes dizia,
apontando para um menino da favela que toca violino: “Ele, Daniel,
só queria uma oportunidade”. Teriam visto as pessoas se retirando
do encontro, depois que Lula acabou a sua fala, a ponto de o locutor
lhes pedir que ficassem, porque teriam ainda um show de Alceu Valença
e Geraldo Azevedo. Inútil, porque ainda assim as pessoas se
retiravam, porque o ápice do drama, nessa noite, já havia sido
atingido: o presidente lhes falara que do seu destino um homem não
desiste. Que nada pode ou não deve estar definido antes em razão de
renda, lugar, sexo ou raça.
Quando Lula fo atingido
por um câncer, pude vê-lo. Eis o homem:
As fotos
de Lula na imprensa, com os cabelos e barba raspados por dona Marisa,
a primeira coisa que vem na gente é um choque. A intimidade de Lula
com o povo brasileiro é de tal sorte, que vê-lo nesse estágio de
luta contra o câncer é o mesmo que rever um amigo caído em um
leito de hospital. Depois, quando a gente atenta bem para a sua face,
a sorrir, brincalhão, como a nos dizer “eu ainda vou provar um
caldinho de feijão em Pernambuco, não desesperem”, bate na gente
uma simpatia por esse homem provado pela dificuldade desde a
infância. Lula, na foto, está a nos sorrir e nos puxar para cima,
falando “enfrentem, nada está definido”.
Dizem
com muita razão que "Ecce homo!" não se aplica somente a
Jesus crucificado, mas também aos que o crucificaram. “Eis o
homem!”, no caso brasileiro, quer dizer: eis do que a opressão de
classes no Brasil é capaz. Não se tolera nem o mais leve aceno aos
despossuídos, não se quer nem a mais estreita entrada para
marginalizados, do povo se retira qualquer semelhança de cidadania.
Por isso também eis o homem, em Sergio Moro e toda a direita
brasileira:
O modo mais cruel como agiram em relação a
Dona Marisa, a companheira da vida de Lula. Primeiro, porque a
mataram de forma lenta e perversa, indigna, quando a envolveram em
crimes de corrupção – quem? Sérgio Moro e bando – em compra de
apartamento que jamais possuiu. E mais pedalinhos para os netos!
Ainda nessa primeira morte a mataram quando viu caluniarem para a
humilhação Lula. Dessa primeira morte é inescapável a culpa da
grande pequena mídia, que acusa primeiro e apura depois, que publica
maldosas hipóteses como fatos consumados, na base do “se não
furtou, alguém furtou para ele”. E mais a perseguição nos
processos da Lava Jato, onde o criminoso Lula é visto como o chefe
secreto da corrupção de todos os tempos no Brasil. Dessa sua
primeira morte, mídia, Moro e demais assemelhados têm uma
inescapável culpa.
Depois, mataram Dona Marisa de modo
mais rápido, quando a tiveram à mercê de cuidados na maca, no
hospital Sírio. E aqui, os médicos que desonram o Brasil, que
retiram o nosso povo do convívio civilizado, tiveram o seu grande
final. A queda mais baixa, que os nivela a seus irmãos nazistas e
dos tempos da ditadura brasileira. Começaram pela canalhice de
divulgar imagens da tomografia de Dona Marisa. Digamos assim, foi até
uma canalhice menor, à altura dos seus braços que esvoaçam corpos
indefesos como asas de urubu.
Enfim, neste conselho
cristão, eis o homem:
Não desejem tanto mal a
Lula, porque se as suas pragas pegam, o mal lhes vem em triplo.
Quanto mais dramas, problemas ou pequenas tragédias ocorrem a esse
homem, mais ele cresce como pessoa e político. Respeitá-lo, gostar
da sua história é mais sensato. Não sejam loucos de querer a sua
morte morrida ou matada, entre dores, tragédia ou tiros. Pois se tal
acontecer, vão ter que conviver o resto das suas vidas com São
Lula. Imaginem o que seria render-lhe graças em todos os terreiros e
templos do Brasil. Os loucos e raivosos estariam preparados? Melhor
desejar a Lula o que a maioria do povo agora deseja: força, eterno
Presidente.
Por isso, fala o Evangelho: depois de toda
crucificação, Lula ressuscitou e está vivo.
*
Escritor, jornalista,
colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La
Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no
Recife”, “O
filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de
Recife” e “A mais longa
juventude”. Tem inédito “O Caso Dom
Vital”, uma sátira ao ensino em
colégios brasileiros
Entre acertos e erros, mais acertos. No tempo de Lula o Brasil ia tão bem. Seria maquiagem à realidade? A perseguição e escrutínio feroz da sua vida fez boa parte dos brasileiros terem ódio de Lula. E quem defende o que ele fez de bom recebe insultos do mesmo tamanho que ele.
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