sexta-feira, 24 de março de 2017

Enxergando "além" do real



Os escritores em geral e os poetas em particular têm uma visão mais aguçada do futuro do que as pessoas (digamos) “comuns”. Ao contrário da idéia geral que se faz desses artífices da palavra, seres inspirados, "cúmplices dos deuses", eles não estão alheios à realidade que os cerca. Muito pelo contrário. Em virtude de um dom natural de que são dotados, conseguem enxergar muito além do real, projetando a realidade para adiante, muito adiante do seu tempo.

Assim foi, como tantos outros, o mineiríssimo Carlos Drummond de Andrade.  Poucas pessoas no Brasil conseguiram ver com tanta agudeza os problemas sociais que afetavam (e afetam mais do que nunca) nossa população, como ele. Os contrastes que nos caracterizam, as contradições que nos dominam, o nosso jeito peculiar, um tanto moleque de ser, que tem facetas boas e ruins, jamais escaparam da sua aguçada "visão de raio x".

Drummond sempre foi tido como um sujeito sisudo, de poucas palavras, duro como o minério de ferro da sua Itabira natal. Mas por trás daquela carapaça de severidade, havia um coração brando e terno. Atuava um cérebro preocupado com os desajustes sociais deste país que ele tanto amava. Era lúcido em suas observações. Era objetivo em suas colocações. E era, sobretudo, humano na avaliação das fraquezas, próprias e alheias.

Isto é característico dos poetas, dos escritores em geral, videntes por excelência. Afinal, ao contrário do que se imagina, são eles que usufruem plenamente da existência. O iluminado autor de "Recherches du temps perdu", o imortal Marcel Proust, escreveu, a  propósito: "A verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida por conseguinte realmente vivida, é a literatura".

Mas a arte de sonhar, de elucubrar, de gerar imagens mediante o uso do instrumento da palavra, tem um sentido essencialmente prático, embora não pareça. Quem constatou isso foi o "pai" das viagens espaciais, o russo Konstantin Tsiolkowski, um dos primeiros homens a acreditarem realmente que o ser humano poderia viajar no espaço, antes mesmo da invenção do avião, e que desenvolveu toda uma teoria acerca de como isso seria possível. Afirmou: "A princípio, surge a idéia, a fantasia, o conto. Depois deles, o cálculo científico. E então, os homens práticos tornam a idéia real".

Num país como o nosso, virtualmente sem memória, nunca é demais, portanto, a lembrança do nosso poeta maior. Até para que, no futuro, os que vierem a falar dele (e oxalá falem, de fato), se lembrem de seus poemas magistrais, de seus saborosos contos e de suas crônicas de refinado humor publicadas nos mais importantes jornais brasileiros e não digam, somente, que se tratou do homem que emprestou a sua imagem para a efígie estampada na efêmera cédula de NCz$ 50,00, lançada em um dos tantos e fracassados planos econômicos destinados a conter um processo hiperinflacionário que parecia incontrolável, que circulou entre 17 de março de 1989 e 30 de setembro de 1992 e que a imensa maioria dos brasileiros sequer sabe que existiu.

Que Drummond seja lembrado, em um século vindouro, ou, quem sabe, em um próximo milênio (supondo que a Terra e seus habitantes ainda existam e que não tenham sido destruídos e que haja, sobretudo, um Brasil, e que seja melhor do que este atual, com um povo mais generoso e feliz), por exemplo, por poemas como este “Nota social” (entre centenas de tantos outros que ele nos legou):


“O trem chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da Terra,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos...
O poeta está melancólico.

Numa árvore do passeio público
(melhoramento da atual administração)
árvore gorda, prisioneira
de anúncios coloridos,
árvore banal, árvore que ninguém vê,
canta uma cigarra.
Canta uma cigarra que ninguém aplaude.
Canta, no sol danado.

O poeta entra no elevador,
o poeta sobe,
o poeta fecha-se no quarto.

O poeta está melancólico”.


Lindo, não é verdade? Simples e belo! Essa é a forma justa, eficaz e sábia de reverenciar a genialidade de nosso poeta maior. Ou seja, não permitindo que sua obra se perca irreversivelmente no tempo, mas que sobreviva ao tempo e ao esquecimento como patrimônio artístico e cultural de um povo que ele tanto amou. Pois como ele próprio escreveu, talvez prevendo ser esquecido: “O poeta está melancólico...” Pudera!

Boa leitura!

O Editor.

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