quarta-feira, 22 de março de 2017

Conversando com a minha mãe – 6

* Por Urda Alice Klueger


Está cheinho de boas almas com quem conversar hoje, pois a gente do Bem é grande, mas sinto que hoje devo conversar com a mãe, que tanto viu e tanto soube e tanto sentiu deste país, desde antes do tempo do Getúlio. Mas acho que a mãe ainda não sabe o que eu vou contar agora, e por isto é que achei que devia contar.

Trata-se daquele homem que está só, lá naquele apartamento, acompanhado de um filho e das tantas e tantas lembranças, o coração rasgado de dor pela segunda vez, vertendo o sangue vermelho da dor sem consolo, assim como aqui também o meu coração dói, pois é tão triste, mãe, tão triste...

Sabe, mãe, tinha sabido dela faz assim como uns dois anos, quem sabe três, e eram notícias tão lindas! Disseram-me de como ela estava bonita, magérrima, elegante, unhas bem feitas, estuante de vida, pronta para recomeçar tudo de novo na sua vida que era sempre um hino de amor e de justiça; aquele coraçãozão que ela tinha no peito a lhe ruborizar as faces de tanta energia, as mãos estendidas para ajudar, sempre – gente assim como ela, daquele naipe único, se a gente sabe uma vez cada dois ou três anos já é um privilégio, enche o coração da gente de beleza, reacende todas as esperanças... Ai, mãe, não consigo pensar que ela se foi assim, sufocada pela maldade, ela que só tinha o bom e o belo para espargir para quem se achegasse... A mãe soube que ela se foi, penso. Talvez vocês duas já tenham se encontrado por aí aonde estão agora, quem sabe a mãe já disse para ela da admiração que tinha pela trajetória dela, que a mãe sabia desde lá da infância dela...

Mas queria falar, agora, é daquele homem, o marido dela, sozinho com um filho lá naquele apartamento agora tão vazio, irremediavelmente vazio da alegria e da beleza que era ela, aquele apartamento tão intensamente cheio das lembranças dela que não sei como ele sobrevive ao rubro do sangramento do coração partido de dor...

Nunca pensamos numa coisa assim, né, mãe, nem naqueles maravilhosos momentos quando ela se torna a vedete da nossa esperança – a gente não podia imaginar... Nunca se imagina uma coisa assim, e o marido dela também não imaginou e foi pego de surpresa como toda a gente do Bem, e agora está lá naquele apartamento sangrando de dor muito mais que eu aqui... Recém soube que ele começa a reagir, a fazer ginástica de novo, pois ele não se pertence e tem que voltar a se preparar para a luta imensa que tem pela frente, porque ele é assim, homem de luta, e ela não esperaria outra coisa dele. Aí onde ela está, agora estrela, decerto a mãe acompanha como ela manda forças para ele, pois a mãe sempre acompanhou o que ela fazia... A gente está contando com a força dela somada à força dele, pois sem ele, o que será de nós, seres já com poucas forças, que nunca tinham tido a dimensão da tremenda perversidade que tomou conta deste país, e que só ficou clara naquela Noite dos Horrores, mãe, quando os deputados votaram para derrubar a presidenta – penso que a mãe há de ter se inteirado disso.

Então aquele homem está lá e começa a reagir fazendo ginástica, e ele é o centro da nossa esperança de sair do lodaçal. Mãe, se der, pergunta a ela como vai ser, pois ela agora pode ver mais longe e talvez saiba as coisas por antecipação. Eu tenho tanta pena dele assim sem ela, o coração partido sangrando tanto... Se a mãe puder dar uma passadinha lá e fazer qualquer coisa por ele, uma oração, talvez, eu vou ficar um pouco menos triste. Ele precisa de toda a nossa ajuda – a daqui e a daí – pois a perversidade que tem que enfrentar é tanta, que toda a ajuda se faz necessária. Como me dói o coração sabê-lo assim, mãe, como dói!

(Dedicado a Lula e à Dona Marisa Letícia)
Enseada de Brito, 10 de março de 2017.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).




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