Um
olhar profundo sobre a nossa tragédia
* Por
Emanuel Medeiros Vieira
O Tambor, de Herculano
Farias, é um forte e belo livro de contos. Antípoda de modismos ou
facilitarismos, da mediocrização do fazer artístico imposto pela mídia, da
camuflagem das tensões da vida brasileira, sistemática e deliberadamente
forçada pelas elites e classes dominantes nacionais, a literatura de Herculano
Farias é visceralmente um mergulho nas essências e na busca de uma verdade
humana.
Diante deste “espírito
de tempo”, cínico e escamoteador, que pretende a resignação de todos nós, a
neutralização de qualquer foco de inquietação, Herculano lanceta o tumor. E vai
fundo. Não dá tréguas. Não é róseo, não concilia porque não quer enganar. Numa
ficção e num estilo de alta voltagem, num ritmo que não dá fôlego, que prende a
respiração, inexorável por um sentido de fatalidade, ele nos convoca a uma
participação intensa. Ele não é o porta-voz de um modelo que a tudo quer
banalizar — até o mal. Rema contra a corrente da mediocridade, do amortecimento
do pensar, onde sempre parecem vigorar não apenas a mentira e o cinismo, mas a
desesperança que inunda toda a vida brasileira. O autor pisa fundo, não
mistifica nada. Não faz um arremedo de literatura, não faz contos
“dispensáveis” ou inúteis — uma inutilidade e falta de verdade humana que
pare¬cem impregnar certas produções da nossa literatura recente. Essa ficção
estimulantemente tensa é um olhar fundo sobre a nossa tragédia. O mundo
primitivo, do “começo das coisas”, que ele capta, é o universo de todos nós,
que a urbanização fre¬nética do país não consegue esconder.
Sua ficção aponta para
essas trapaças morais com as quais temos que conviver cotidianamente, com esse
individualismo pequeno burguês eivado de cinismo e da ética do “salve-se quem
puder”. Essa consciência agudamente “trágica” nunca é panfletária ou
superficial. Teria a tentação de chamá-la de “ontológica”, de radicalmente
fundamental.
Só um criador com seu
fôlego, com suas antenas ligadas, com sua percepção, com essa feroz necessidade
de dar voz aos que não a têm, poderia detectar a “ética do nosso tempo”, da
proliferação de consciências alienadas, da mentira erigida como verdade, onde o
arcaico passa como moderno, o secundário como essencial. Sim, ela capta
degradação do sentido das palavras, desgastadas pelo uso mistificador. Que
“modernidade” é essa? Neste reinado da palavra que esconde mais que clarifica,
artista que é, Herculano Farias não fala só por ele. Fala por todos nós, nesse
trânsito entre a inter-subjetividade das consciências. Fala por toda essa
humanidade que está condenada a “vegetar” como “res”, coisa, seres alienados de
si mesmos. Seres (alguns) que vivem como bichos.
O Tambor é um sopro
fortíssimo. Os contos que enfeixam o livro só por si denunciam essa falsa
calmaria, essas águas paradas, essa viscosidade, essa pseudo moral da época,
mesqui¬nha e degradante.
Mas o autor, avesso
aos tecnocratas de todos os quilates, não cai na frieza parnasiana nem no
espírito “bem pensante”, que não se envolve nem suja as mãos. É exatamente o
descarnamento do estilo, a economia de meios, o ir direto ao essencial, que nos
comove tanto. Que tornam os contos do autor catarinense tão pungentes. Por isso
nunca ficamos indiferentes ao final da leitura. (Alguns ficarão perplexos, com
a boca crispada e só depois perceberão que essa contundência e violência não
são criações do autor. Estão aí. No mundo.)
Os contos de O Tambor
nunca caem no naturalismo, nem nos clichês sentimentais degradados do “gosto
médio” — manipulados pela moral hegemônica. Pelo contrário. Os textos vão ao
essencial. Ao fundo. Herculano não pinta nem glorifica Napo¬leões, nem tecnocratas
de plantão. Essa paixão funda — que sempre penetra no espírito dos grandes
artistas — perpassa o livro sem subterfúgios, engodos ou desculpas. É ausência
do su¬pérfluo — no estilo, no uso das palavras, que mais comove. Até pelo
implícito. É a chamada arraia-miúda que ele dá voz, contempla essa humanidade
primitiva, abandonada em todos os confins. Do Brasil ou da alma.
“O Tambor” — o
excelente conto que dá título ao volume — é também uma metáfora sobre todos os
despossuídos e da¬nados da nossa terra — e das outras. Mais que isso. Quem
sabe, os personagens querem resgatar, pelo menos um pouco, a digni¬dade
perdida, usurpada — o tambor é tudo aquilo que lhes foi negado na travessia do
tempo, (a posse de um objeto, uma vida digna, uma esperança, qualquer que seja).
Negro Odete, de “Rio
Abaixo”, é um personagem marcan¬te, que não poderá entender o seu destino
fatal, inocente que é, naquele universo dos velhos mortos, do barqueiro que ao
final o denuncia e com quem trocara bens, dos policiais, dos porcos, de toda a
gente humilde: “Negro Odete subiu no barco com os homens e não entendeu porque
o levavam para a cidade, com as mãos presas atrás das costas. Desciam o rio e
falavam o tempo todo, mas Negro Odete não os ouvia tinha horas, pensando na
tapera, no garapuvu, nos peixes e na vara de pescar.”
Vivendo um tempo
primitivo, os personagens sentem que as coisas acontecem, mas eles nunca são
agentes dessa construção. Quase sempre são vítimas. Vitimas dessa “fatalidade”
que a todos traga, não só aos homens, mas aos bichos, à própria natureza.
O conto “Rio Acima”
vale mais que um tratado sobre a alienação (nesse sentido lembra “São Bernardo”
do velho e bom Graciliano Ramos). O personagem narrador, capataz de uma
fa¬zenda, ao final repete a própria vida — é sua continuação — do personagem
fazendeiro Tortinho, o manda-chuva dominador. A diferença era de posse (de ter)
mas os vícios eram os mesmos:
“(...) “Fui comprando
uns pedaços de terra, separando meu gado, quando me dei conta, tinha mais gado
que seu Tortinho.” Herculano Farias fala sobre isso tudo. Esse “tudo” que
alimenta a literatura de todos os tempos. Mas não são os temas que importam.
São sua transfiguração, a competência de narrá-los: é a cobiça, a posse, o
dinheiro, o tempo, a morte, a degradação dos sentimentos, a incomunicabilidade
humana (“Café da Manhã”, que lembra o antológico “O Almoço”, de Sagrada
Família”). No tocante “A resistência”, filhos e netos querem vender a casa do
velho pai (a cobiça).
Mas como bom criador
que é, o autor não julga. Essa não é a sua missão. Sabiamente, não interfere na
vida dos personagens. Ela corre natural, autonomamente.
Sim. É (também) uma
literatura destes tempos degradados. Da prostituição dos sentimentos. Da
mais-valia afetiva, da penúria existencial. Onde a busca de valores caros e
nobres, no interior da hegemonia da pecúnia, é sempre destinada ao fracasso.
São lugares remotos do mundo o que habita a maioria dos personagens. Num estilo
tenso e rascante, ele evita a tentação do excesso, da descrição inócua e
bocejante, da repetição banal.
Alguns espíritos
poderão ficar assustados com a potência dos mísseis que Herculano Farias
dispara, como em “Nada a Declarar”, curtíssimo, que na escassez de meios
usados, absolutamente enxuto, é de uma contundência impressionante. “Livros” tem
um humor cortante e ácido. O livro deixa de valer pelo que é, por sua essência
inerentemente humanística, por seu valor intrínseco, mas pelo valor de troca,
impera então como mercadoria.
Não quero me alongar.
Mas é exatamente esse sentido do ser transformado em mercadoria — que atravessa
uma literatura cortante e tensa — que nos faz refletir tão intensa e
dolorosamente sobre a condição humana. Sim. A literatura de Herculano Farias é
também uma crítica da vida.
Essa noção de corrosão
sentimental, de alienação tem a acompanhá-lo uma extrema compaixão (não é
piedade) com-paixão, no sentido dostoievskiano do termo. Compaixão por esses
seres humanos mergulhados na aventura de viver. É um huma¬nismo radical.
Radical no sentido de pegar as coisas pela raiz (às vezes temos que repetir o
óbvio.) Insisto: é uma compaixão ontológica (o tempo, a memória, a dor, a
degradação que nos é imposta por sistemas iníquos). É essa a literatura que
amo, que vai ao osso humano, de absoluta tensão interna, avessa ao gosto de
cortesãos ou madames ociosas.
É essa a literatura
radical e dolorosamente bela de Herculano Farias, catarinense e universal.
* Romancista, contista, novelista e
poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis –
ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos
domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros
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