Nelson
Ferreira
* Por
Isabelle Barros
Há quarenta anos, a
música de Pernambuco ficou em tom menor. Em 1976, o maestro Nelson Ferreira
morreu e levou com ele um talento musical prodigioso, que deu origem a cerca de
600 composições, entre eles frevos ouvidos até hoje nas ruas, casas e clubes.
Se nomes como Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon ainda são lembrados,
é por causa dele e de sua composição mais famosa, Evocação nº 1. No entanto, a
importância de Nelson Ferreira não se resume às suas composições e ao seu
talento como pianista e arranjador - como se isso fosse pouco. Ele foi o
responsável por revelar talentos e desbravar um espaço novo para a música
pernambucana como diretor artístico da Rádio Clube de Pernambuco e da Fábrica
de Discos Rozenblit. Na primeira, impulsionou carreiras como a de Sivuca
(1930-2006), que ficou grato a Nelson até o fim de sua vida, e, na segunda,
gravou frevos que não estariam registrados se não fossem pela sua ligação
umbilical com a música pernambucana.
Nelson Ferreira já era
um compositor e pianista bastante conhecido no Recife, onde morava desde um ano
de idade, antes de entrar na Rádio Clube de Pernambuco, em 1931. A emissora era
a única do Nordeste e o rádio começava a se popularizar como meio de
comunicação. A versatilidade do músico, por sua vez, havia sido moldada após
sua experiência como pianista do cinema mudo. “O trabalho musical era, na
maioria das vezes, feito de improviso, para acompanhar as cenas mais distintas
de comédias, dramas e romances”, explica o pesquisador Renato Phaelante.
Precoce, já havia composto e editado, aos 14 anos, a valsa Vitória, para a
Companhia de Seguros Vitalícia Pernambucana. Nessa época, ele também tinha a
seu favor a gravação de Borboleta não é ave, em 1923, o primeiro frevo
registrado pela indústria fonográfica, e várias músicas que ficavam na boca do
povo durante os Carnavais.
No entanto, para a
jornalista e biógrafa de Nelson Ferreira, Angela Fernanda Belfort, a incursão
na rádio foi uma virada fundamental. “Ao meu ver, a maior contribuição dele à
cultura não foi como compositor, mas como diretor artístico da Rádio Clube, a
partir de 1934. Quando ele assumiu o cargo, abriu as portas da rádio para um
grupo que compunha frevos de primeira. Nelson Ferreira massificou o ritmo e a
emissora tinha uma audiência enorme enquanto ele ocupou essa função. Com a
execução nas rádios, surgiu um mercado local e, por isso, o frevo não se tornou
uma música de gueto”. A versatilidade dele também transpareceu nas outras
funções exercidas na empresa: produtor, arranjador, apresentador do programa A
hora azul das senhorinhas e até radioator, além de conduzir a orquestra da
estação. Fora da rádio, ainda encontrava tempo para incursões nas artes
cênicas, contribuindo com músicas para o Grupo Gente Nossa, fundado por Samuel
Campelo, e com o Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP).
A visibilidade de
Nelson como diretor artístico na Rádio Clube o levou a desempenhar a mesma
função na Fábrica de Discos Rozenblit a partir da fundação da gravadora, em
1953. Lá, teve a mesma atitude que balizou sua atuação na rádio: se cercou dos
melhores músicos disponíveis e, generosamente, deu espaço a outros gêneros musicais
pernambucanos. “Nelson contribuiu para a divulgação de compositores como
Antônio Maria, Aldemar Paiva, Luiz Bandeira, José Menezes. Ele também abriu
espaço para a música folclórica e regional, focalizando cirandas, cantadores de
coco, violeiros, repentistas, aboiadores, tornando mais importante o trabalho
desses abnegados”, lembra Phaelante.
Em paralelo às suas
atribuições, Nelson nunca deixou de compor. “Ele tinha uma facilidade enorme
para isso, assim como Capiba”, pontua Angela Belfort. A relação entre os dois
compositores de frevo mais famosos de Pernambuco é um ponto que ainda deixa
margem a versões divergentes. No livro Nelson Ferreira, o dono da música, a
biógrafa afirma que havia uma rivalidade cordial entre eles. Por sinal, os dois
nunca fizeram parceria em nenhuma música. “Eles se tratavam muito bem, eram
amigos”, afirma Luiz Carlos Ferreira, único filho de Nelson. Já o cantor
Claudionor Germano, que gravou dezenas de músicas de ambos, apresenta outro
ponto de vista. “Existia, sim, uma certa disputa entre eles. Um falava do outro
e eu ficava no meio”.
Além de dar espaço a
artistas locais, o compositor também usou as instalações da Rozenblit para
escoar sua própria produção de frevos, fossem eles antigos ou novos. Foi
justamente tendo Nelson Ferreira como diretor artístico da gravadora que a
empresa emplacou seu maior sucesso em 1957: o frevo-de-bloco Evocação,
posteriormente rebatizada com o nome de Evocação nº1 já que, estimulado pelo
sucesso dessa música, compôs mais seis canções com a mesma temática. “Ele tinha
saudade das canções entoadas pelos blocos carnavalescos dos anos 20, que mal
conseguiam sobreviver nos anos 50. Foi esta a inspiração para a música. O
compositor não achava que esse frevo-de-bloco ia vender, mas, ao vencer um
concurso da Rádio Nacional, ele estourou no Brasil inteiro”, detalha Angela.
Nos últimos anos de
vida, Nelson se preocupava com os destinos da música local. Ao se aposentar da
Rádio Clube, em 1968, montou a Orquestra Nelson Ferreira, mas a concorrência
com a música vinda do Sudeste, especialmente o samba, e a crise da Rozenblit,
debilitada após sucessivas enchentes que danificaram suas instalações, não lhe
eram favoráveis. Mesmo assim, se manteve ativo, compondo e à frente de sua
orquestra até pouco tempo antes de falecer. Em 21 de dezembro de 1976, foi a
vez de Nelson ser alvo de evocações e homenagens. No cortejo para seu enterro,
compareceram mais de duas mil pessoas. Entre elas, Evocação nº 1, sua ode ao
Recife e ao Carnaval.
DEPOIMENTOS:
MAESTRO EDSON RODRIGUES
"Ele realmente
foi o dono da música. Ninguém gravava nada sem passar por ele. Eu era um
ilustre desconhecido quando ele pôs meu frevo Duas épocas no disco Sua
excelência, o frevo de rua, em 1965. Este foi o meu primeiro contato com
Nelson. Era um cara muito jovem, uma pessoa com um humor espetacular. Quando
Nelson morreu, fui chamado para liderar a Orquestra Nelson Ferreira, e eu
entrei em contato com uma faceta desconhecida para mim: ele não sabia dizer
não. Era legal demais e um defensor intransigente das coisas de Pernambuco. Ao
tomar conta da orquestra dele, tinha o dever de seguir com sua bandeira. Ele
lutou o bom combate. O frevo não vai morrer, mas lamentavelmente as rádios não
tocam. Não se sabe o que não se ouve e, se não se ouve o frevo, ninguém vai
saber o que ele é. Abrimos a guarda e tomaram conta do nosso Carnaval. É um
crime de lesa-cultura que está acontecendo em Pernambuco".
CLAUDIONOR GERMANO
O cantor estabeleceu
uma relação longeva com Nelson Ferreira. Em 1963, o artista gravou um LP de 78
rotações que se tornou o primeiro lançamento do selo Mocambo, da Fábrica de
Discos Rozenblit, com o frevo-de-rua Come e dorme e o frevo-canção Boneca,
composto por Aldemar Paiva e José Menezes. “Nelson colaborou comigo em 60
músicas. Frequentei muito a Rádio Clube quando Nelson Ferreira era diretor
artístico e cheguei a ser crooner da orquestra liderada por ele. Lembro que ele
ficava danado da vida porque eu não acompanhava o grupo nas viagens que a
orquestra fazia, já que constituí família muito cedo e tinha de fazer trabalhos
paralelos para me sustentar. Após uma premiação, foi ele quem me disse que eu
deveria fazer carreira solo. Ele era delicado, humilde, se vestia muito bem e
era festejado onde quer que passasse".
LUIS CARLOS FERREIRA,
FILHO DE NELSON FERREIRA
O único filho de
Nelson Ferreira, Luiz Carlos Ferreira, recebeu a reportagem em seu apartamento,
no Bairro da Boa Vista. Este foi o imóvel onde o maestro passou seu último ano
de vida, após ter sua casa desapropriada pela Prefeitura do Recife para o
alargamento da Avenida Mário Melo, em Santo Amaro. No lugar exato do imóvel,
foi criada uma praça em homenagem ao músico.
"Ele era uma
pessoa que tinha uma inteligência muito forte e foi subindo gradativamente de
posição social. Pessoas como ele fazem muita falta quando se vão. Ele veio do
nada, mas era extremamente comunicativo, talentoso e, com isso, ganhou muitos
amigos. Ele era muito bem-humorado, gostava muito de trocadilhos, mas, se ele
não gostava de alguém, não tinha jeito de fazê-lo falar. Ele era muito rigoroso
com a música e desagradava muita gente por causa disso. Meu pai sempre me
educou bem e, o que é importante, sempre viveu de música. Sua contribuição para
o frevo foi muito forte - suas músicas não morrem".
Fonte: Diario de
Pernambuco, Recife, 17/01/2016
*
Jornalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário