A pobreza tem alma de Vazinguiton
*Texto de Hernando Calvo Ospina (Colômbia) - **Tradução
de Urda Alice Klueger (Brasil)
Ao atravessar a rua
lutava até com a leve brisa que nas tardes quentes vinha da montanha, para que
ela não o jogasse ao chão e não o derrubasse. A busca de sobras no lixeiro que
se amontoava numa esquina, duas quadras abaixo, fazia-a pela manhã. Nunca se
soube que lutou por um osso com outro cachorro ou rato. Ia e voltava com seu
passinho típico: meio de lado, como que arrastando as patas, cabisbaixo, as
orelhas caídas e sem pressa. Nem o que
achava no lixeiro nem o as sobras que lhe davam em sua casa eram suficientes
para engordá-lo, pois as costelas saltavam acima de seus pelos cinzentos. Mudo,
discreto ou sem forças, o certo é que não lembro de tê-lo escutado latir.
Ninguém sabia sua idade ou quem era sua família.
Um dia apareceu com
seu caminhar de lado, sulcando a rua de terra pura, no meu velho e humilde
bairro de Cali, no sudoeste da Colômbia. A ele não importou que estávamos
jogando futebol. Nós, ao ver a terrível indiferença do forasteiro diante da
vida, paramos o jogo para que passasse. Não se sabe por que, entrou sem pedir
permissão em uma casinha de tábuas que existia em frente da minha casa, a qual
tinha um só espaço que servia de sala de jantar, dormitório e cozinha. Foi
direto para debaixo de uma das três camas e pôs-se a dormir. Diante de tal
ousadia, os donos nem se atreveram a protestar. Preferiram adotá-lo. Horas
depois, quando saiu até a porta, os demais cachorros vieram cheirá-lo e foi
aceito. Para nós, um cachorro a mais não era problema.
Em seguida veio a
grande discussão: como chamá-lo. E com o noticiário da rádio veio o nome. O
bando de meninos decidiu que se chamaria Vazinguiton. Ninguém perdeu saliva tratando
de corrigir a pronúncia, porque todos nós ouvíamos Vazinguiton, e não
Washington.
Apesar do seu
deplorável aspecto, que incluía princípios de sarna nas orelhas e no rabo,
Vazinguiton era a nossa admiração. Durante vários dias, quando nas tardes
voltávamos da escola, nos reuníamos para falarmos de seu aspecto e escassa
vitalidade. Uma ventania o levaria como folha seca ao vento; várias vezes ficou
imobilizado nas poças de lama que a chuva formava na rua, e ali íamos para
servir-lhe de guindaste. Porém Vazinguiton tinha uma particularidade admirável.
Das quarenta casas e
casinhas que deviam existir nas duas quadras da vizinhança, pelo menos numas
trinta se dividiam os modestos alimentos com cachorros, cachorras, gatos e
gatas. Quando uma dessas fêmeas caninas entrava no cio e começava a buscar
namorado, a rua se punha em efervescência. Era um espetáculo ver dez ou quinze
cachorros cercando e montando a cachorra por qualquer lado. Diante de tanto
assédio, ela se jogava ao chão e começava a distribuir mordidas, porém nem
assim a deixavam tranquila. E começavam as brigas entre os cachorros, que
acreditavam que o mais forte seria aceito para um breve romance. Não existiam
aliados, era uma disputa de todos contra todos.
Vazinguiton preferia
observar a cena de uma prudente distância. Justamente no momento em que a
guerra canina estava no auge, Vazinguiton se acercava da cachorra, cheirava-a,
lambia-a, e ela como que hipnotizada se levantava e saía atrás desse eleito sem
garbo. Os lutadores se davam conta e se precipitavam no meio de latidos atrás
da cachorra e até mordendo o imutável Vazinguiton.
Demasiado tarde. Se o
dono da cachorra não se interpunha, no meio das dificuldades da guerra
estabelecida, Vazinguiton fazia com que ela entrasse na casinha. Os
proprietários de encarregavam de fechar a passagem aos mais raivosos e
excitados pretendentes. Vazinguiton
levava a namorada diretamente ao prato metálico aonde se serviam os restos de comida, oferecendo a ela o pouco
que havia, e que ela acabava em duas lambidas. Com a tranquilidade assegurada,
ela entrava no jogo amoroso de Vazinguiton, debaixo da sombra de uma mangueira.
Ali comprovava o que muitas cachorras da vizinhança comentavam: sem fazer
filhotes, era ele o melhor amante.
Quando me perguntam
sobre a minha infância e meu bairro, conto da sua alegria, da vizinhança
solidária, da sua pobreza, e de Vazinguiton.
*
Hernando Calvo Ospina é um jornalista e escritor colombiano que vive em França.
(Traduzido
em novembro de 2012)
** Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre
os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12
edições).
Com sentimento, o banal se amplia e ganha jeito de extraordinário.
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