Separatistas e anti-separatistas
* Por
Viana Moog
O que temos a fazer é
separar o Rio Grande afirma o promotor, olhos postos no prefeito como a pedir
aprovação. E como visse que o chefe aprovava com a cabeça, acrescentou: O Norte
é o peso morto do Brasil: só dá seca, impaludismo e febre amarela. Mas
lembrando-se de que Geraldo era amazonense, procurou suavizar: Aqui o amigo não
repare. Que diabo! Já come churrasco e toma chimarrão.
Está bem disse Geraldo,
sem jeito. Não se constranja. Fale com toda a franqueza. Mas que vantagem vê
você na separação?
Ora, ficávamos
livres...
Não, o Rio Grande só
ficava muito pequeno interrompe o secretário. Podíamos incorporar Santa
Catarina, Paraná e São Paulo. Precisamos de São Paulo por causa do café e das
indústrias.
Ruben Tauben queria
também o Rio de Janeiro. Cidade bonita, a mais bonita do mundo. Tinha um tio
que conhecia Constantinopla e não a achara tão bonita quanto o Rio. Ele mesmo
podia dar o seu testemunho. No centenário tinha ido lá com o tiro-de-guerra.
Karl Wolff procurava
interessar-se, mas não conseguia. Um Brasil do Amazonas ao Chuí, limitando-se
ao norte com Mampituba ou com o Oiapoque era-lhe indiferente. Ele mesmo não
sabia, nem podia compreender como o Brasil chegava a constituir um Estado
independente. Por mais que revolvesse a memória, esta só lhe restituía fatos
vagos, imprecisos, esfuminhados, coisas da escola, dispersas, desconexas.
Primeiro uma data, 1500, depois um nome, Pedro Álvares Cabral, o Seu Cabral das
últimas canções carnavalescas; algumas guerras sem importância contra os
franceses e os holandeses; o 7 de Setembro, onde aparecia um príncipe de espada
desembainhada, cercado de cavaleiros, à margem de um riacho, como no motivo de
tapete que acabara de ver na sala de honra do Centro; a guerra do Paraguai, que
o Brasil não teria vencido se não fosse a ajuda dos primeiros colonos alemães;
o 13 de Maio, que proclamou a libertação da negrada, uma gente que podia afinal
de contas continuar escrava e não precisava andar por aí a faltar com respeito
aos arianos. Depois, uma série de revoluções, de correrias, de requisições que
só serviam para atrapalhar o comércio e a indústria, fruto exclusivo do esforço
germânico.
Pois bem, incorporamos
o Rio de Janeiro sentenciou o prefeito, pondo termo à discussão.
Sim, mas até agora
ninguém me deu ainda as razões por que deva ser feita a separação insiste
Geraldo. Que conveniência vêem os senhores em que o Rio Grande, São Paulo,
Santa Catarina e o Rio de Janeiro para fazer a vontade aqui ao nosso amigo
Tauben devam constituir um estado à parte?
Por favor, o senhor que
é engenheiro e entende de números, então não está vendo logo? E o dinheirão que
o Norte representa nas nossas despesas, sem entrar com quase nada para a
receita? Veja as obras contra o seca?
O prefeito achava agora
que talvez não fosse preciso fazer a separação. Eram todos irmãos. Mas opinava
que vinte por cento da arrecadação devia tocar ao município. Não era justo que
a Coletoria Federal de Blumental arrecadasse perto de 5.000 contos e não
ficasse nenhum tostão desse dinheiro para o município.
Nesta altura o agente
fiscal resolve intervir.
Quem paga diretamente
são efetivamente os estados do Sul. Mas indiretamente quem entra com grande
parte desse dinheiro é o Norte.
Mas, como? exclamou o
promotor.
Muito simples. Aqui o
Karl, que é o dono de uma fábrica de sandálias, sabe bem disso. Ele compra o
selo na coletoria e sela as suas sandálias. E quem são os maiores consumidores
dos artigos de Wolff & Filhos?
Karl estava neste
momento pensando em que essa riqueza do Sul era produto exclusivo do trabalho
alemão. Com os colonos alemães é que tinham aparecido as indústrias no Brasil.
E considerava com orgulho a ascensão de Blumental, de mera feitoria há cem
anos, até o parque industrial que lhe valia o nome de Manchester do Brasil.
Tudo trabalho dos alemães, como dizia o pastor: "O que é o Sul do Brasil
deve-o ao trabalho alemão. Se fizermos abstração dos alemães, restará uma
mísera carcaça." Percebendo que o fiscal se dirigia a ele, Karl despertou,
pedindo que repetisse a pergunta.
Quais são os maiores
compradores de sandálias de Wolff & Filhos?
É o Norte responde
Karl. Para ele o Norte era tudo quanto ficasse situado além do Mampituba.
Não, eu quero saber
quais os estados.
Ah, os estados que mais
nos compram são Pernambuco, Ceará, Sergipe, Alagoas e Paraíba. Quase toda a
nossa produção é remetida para a nossa filial de Recife.
Compreendeu? volve o
fiscal, virando-se para o promotor. Feitas as contas, o dinheiro do Norte, que
paga, vai aparecer nos orçamentos como arrecadação de Blumental. O que se dá
com as sandálias de Wolff & Filhos, meu caro, dá-se com o vinho, com os
tecidos e com quase todos os produtos de exportação dos estados do Sul.
Resta ainda averiguar
outra questão acode Geraldo. É se, sem o resto do Brasil, o Sul poderia manter
esse grau de prosperidade que ostenta atualmente.
Ah, que podia, podia!
assegura o promotor.
Tenho minhas dúvidas.
Atualmente a exportação dos senhores para os países estrangeiros é diminuta. O
verdadeiro mercado consumidor do Rio Grande é o Norte. Ele é que fica com o
excedente da produção do mercado interno. Pergunto: teria o Rio Grande à sua
disposição os mercados do país, no dia em que se constituísse estado
independente?
O promotor vacila.
Geraldo, respondendo à própria pergunta, afirmava que não deviam fazer-se
ilusões. Na luta de concorrência contra os similares estrangeiros, em igualdade
de condições, e os similares dos demais estados, protegidos então por suas
tarifas alfandegárias, o Sul seria vencido. Ficaria sem mercado. Teria dentro
de pouco tempo, na própria casa, o colapso pelo excesso, com todo o seu cortejo
de crises. E havia mais ainda, acrescenta Geraldo, aprofundando a tese que ia
desdobrando. Sob certos aspectos até podia sustentar-se que o Norte é que era o
sacrificado.
Como? disseram a um
tempo o prefeito, o promotor e Karl Wolff, agora interessado na discussão.
Tomo o caso do meu
estado, o Amazonas. O nosso mercado normal é o exterior. Os nossos dois
produtos quase que exclusivos são a borracha e a castanha. Vão para a
Inglaterra, para os Estados Unidos, para Portugal, de quem, em compensação, não
podemos comprar nada.
Não compram porque não
querem, ora essa é boa! aparteia o promotor, atirando-se para trás na cadeira.
Não, não compramos
deles porque somos obrigados a comprar dos senhores, porque a isso nos força o
governo, impondo taxas proibitivas aos produtos estrangeiros que possam fazer
concorrência à produção dos senhores. Tomo ainda o caso do vinho e do tecido há
pouco lembrado por Armando. Acha o senhor que o vinho do Sul é do melhor do que
o vinho português, o francês e o italiano? Que acontece? Por causa do imposto
nas alfândegas, para se adquirir uma garrafa de vinho português, cujo custo
real poderia ser de um ou dois mil-réis, paga-se três e quatro vezes mais. Com
o tecido então nem se fala. A casimira inglesa custa os olhos da cara. E qual o
resultado de tudo isso? O Norte, que só teria a lucrar com a supressão das
tarifas, porque a regra da reciprocidade manda comprar de quem nos compra, está
escravizado ao imperialismo das indústrias do Sul. Somos colônias do Sul
conclui Geraldo.
Neste momento Karl
Wolff tinha chegado a uma conclusão quanto às idéias do engenheiro: o homem era
comunista.
Fazemos o que os outros
países estão fazendo há mais tempo pontificou o prefeito delicadamente.
Isso é outra questão.
Não quero dizer que se proceda de outra maneira e que haja alguma coisa a
retificar. Hoje temos um tal amontoado de erros do passado acumulados pelos
povos, à nossa revelia, que não há nada mesmo a fazer, senão acompanhar a
marcha do mundo.
E o Norte por que não
se industrializa? pergunta o promotor, que não queria deixar a discussão parar
num ponto em que se sentia derrotado.
Geraldo não respondeu.
Apenas deu de ombros, fatigado.
O promotor sentia agora
o terreno mais firme. Vendo que Geraldo recuava, tomou novo impulso.
A prosperidade do Sul
vem da raça. Somos um povo mais forte e decidido.
Geraldo permanece
calado.
Então lá se pode
comparar a nossa gente continuou o outro , uma mistura de açorianos, de
charruas, de bandeirantes, alemães e italianos, com a mestiçagem do Norte?
Note-se: falei em açoriano. Não confundir açoriano com português... É outra
coisa. O açoriano é celta... Não, não me venha defender esse pessoal de perna
fina e cabeça chata.
Geraldo quis reagir.
Pensou, porém, na cena do bolão e continuou calado. Ruben Tauben, que vinha
acompanhando distraído a discussão, quando ouviu falar em portugueses, acordou.
Agora podia entrar na palestra. Sabia umas anedotas muito engraçadas de portugueses...
Mas o promotor não lhe
deu tempo. Gesticulando com os braços curtos e magros, procurava novos aliados
contra o engenheiro:
Aqui só dá isso: essa
alemoada forte que você está vendo. E batia amigavelmente no ombro de Karl, que
procurava fugir à intimidade. Desta gente não sai Antônio Conselheiro, nem
Padre Cícero.
E os Muckers? avança
Geraldo, sem poder dominar-se. Mas logo se arrepende. Em lugar de atingir o
promotor, ia talvez ferir o irmão de Lore.
Era tarde para recuar.
Já Karl Wolff intervinha, para explicar que a história dos Muckers estava mal
contada. Fora escrita por um padre. Isso bastava para tornar o livro suspeito.
O que ele pretendera fora desmoralizar os protestantes, quando entre os Muckers
havia muitos católicos. Um livro parcial, cheio de exageros. Os Muckers não
haviam sido o que eu dizia. No princípio fora uma simples luta entre colonos em
torno da interpretação da Bíblia e de questões de terra. Jacobina queria
reparar certas injustiças. Ele sabia, estava bem informado, tinha amigos, rapazes
direitos, descendentes de Muckers. A culpa fora do governo, mandando a polícia
para resolver o caso pela violência. Os padres também tiveram muita culpa. Os
soldados agiram como verdadeiros selvagens. Não foram só os Muckers que
mandaram matar e incendiar. Na picada dos portugueses os católicos fizeram o
diabo. Acabaram om os protestantes. Mas isso tudo nada seria se não fosse a
polícia. Os Muckers apenas se defenderam. Bem se podia ver que os colonos
alemães por si mesmos não seriam capazes de barbaridades. Uma vergonha mandar
prender os chefes e trancafiá-los nas cadeias de São Leopoldo e Porto Alegre,
só porque dirigiam as cerimônias religiosas do Ferrabrás, umas festas inocentes
de cantos e orações e leitura da Bíblia! E não havia nada que justificasse a
remessa para lá de tantas forças do exército com o fim de chacinar os colonos,
como bichos. Degolamentos à vontade. E o pior é que a história nunca seria
contada direito. Os que restavam eram poucos e não podiam falar. Ele não queria
fazer comparações... Mas o que se dissera contra os Muckers era mais ou menos o
que os judeus contavam contra o nacional-socialismo. Pura mentira. Exagero.
Eles é que envenenavam tudo.
Hitler era um homem muito bom.
Armando aprestava-se
para contrapontear, quando da porta Ben Turpin vem avisá-lo e a Ruben Tauben de
que a roda já se tinha formado e só estava esperando por eles.
Karl Wolff sentiu um
alívio. Já era quase meia-noite. Uma noite perdida, pensou. Podia ter ficado em
casa, no seu canto, ouvindo no rádio as estações de Berlim. Mas sua mãe é que
não devia saber onde estivera. Na certa havia de escandalizar-se quando
soubesse que entrara no Centro, aquele antro de jogatina, e passara toda uma
noite conversando com tal gente. Agora, felizmente, chegara a oportunidade de
retirar-se.
Armando quis pagar a
despesa, mas o prefeito não deixou. Não, aquela mesa era dele.
À saída, Becker, todo
mesuras, respondeu aos boas-noites, de acordo com a hierarquia: para o prefeito
e o fiscal foi uma saudação enfática, calorosa. Para Karl Wolff um pouco mais
discreta. Para Geraldo, o secretário e o promotor, uma resposta cansada.
Quando ganharam a
praça, o prefeito chega junto de Geraldo e diz:
É preciso preparar os
homens da hidráulica. As eleições estão chegando.
Geraldo, sem saber o que
havia de responder, apenas pôde murmurar, vago:
Pois não, não há
dúvida.
Karl Wolff se aproxima
para despedir-se.
Então estamos
combinados. Sábado ou domingo, se não chover, podemos fazer a nossa partida.
Um vento forte levanta
a poeira da rua. O grupo se dispersa. Ruben Tauben e o fiscal tomam o rumo do
Centro. O major, o secretário e o promotor pendem para o ângulo direito da
praça. Karl Wolff encaminha-se num passo largo e batido para o fim da rua. O
engenheiro se recolhe ao hotel.
(Um rio imita o Reno,
capítulo 7, 1938.)
*
Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
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