quarta-feira, 5 de junho de 2013

Viva o povo português!

* Por Mara Narciso

João Ubaldo Ribeiro, autor de “Viva o Povo Brasileiro”, pode emprestar-me o nome. Tão acidentado quanto a grandiosa descoberta do caminho marítimo para a Índia, por Vasco da Gama, na qual passou “por mares nunca dantes navegados”, enfrentando povos selvagens, é navegar pelo livro que narra a trama. O tema central de “Os Lusíadas”, a obra de 1572, de Luís Vaz de Camões, escrito três anos após a volta do escritor do oriente, é denso, complexo, tormentoso, não havendo calmaria em parte alguma do palmilhar dos seus 8816 versos. São decassílabos perfeitos, em dez cantos, distribuídos em 1102 estrofes com ritmo e oitavas em rimas tão espetaculares, sendo alternadas nos seis primeiros versos e emparelhadas nos dois últimos versos, que fez dele o livro mais importante da língua portuguesa. É imperioso conhecê-lo, o qual foi fonte de estudo da 14ª reunião do Ateliê/ Clube de Leitura Felicidade Patrocínio.

“Os Lusíadas”, ou, “Os Portugueses” narra a grandiloquente conquista da Índia, acontecida no século XVI, e a exaltação desta viagem serve de pano de fundo para contar a História e grandes feitos desse povo guerreiro, que foi dominado em seus primórdios pelos romanos, e deles herdou o gosto pelo combate.

É difícil adentrar na linguagem hermética dessa epopéia de palavras raras, parte em desuso, modificadas, com letras suprimidas, ou acrescentadas, ou trocadas de ordem, ou grafadas como na atualidade, mas com variações para beneficiar métrica e rima. Com astrolábio, quadrante e balestilha em punho, os metafóricos instrumentos náuticos da época, o professor de literatura e mestrando Márcio Adriano Moraes selecionou as porções que narram a viagem a Calecute, hoje Calcutá, e nos carregou Lusíadas adentro, atrás de Camões.

Começou assim: “Há 441 anos, Luiz Vaz de Camões, um soldado português que havia perdido o olho direito na Batalha de Celta, com a licença da Santa Inquisição nos legou “Os Lusíadas”, um épico cristão que trabalha a mitologia romana, com o patrocínio do rei. Não há enaltecimento ao paganismo, e conta a viagem de Vasco da Gama à Índia em 1497. Esta viagem dura três anos, tendo iniciado a sua escrita por volta de 1550, entrando o descobrimento do Brasil, já acontecido, como uma previsão”. Paralelamente às explicações, desinibido, o palestrante declamou versos heróicos. Contou como foram corajosos os bravos portugueses, com seu pioneirismo suicida, rasgando mares, e cuja nação, a cada época, foi obrigada a expulsar invasores romanos, mouros e espanhóis. Os narradores são vários, e se alternam no decorrer da trama.

Adiante, o professor disse que “a Epopéia Clássica foi dividida em cinco partes e as seguiu didaticamente: Proposição, o elogio dos heróis portugueses; Invocação, a inspiração às Tágides, ninfas do rio Tejo; Dedicatória, a homenagem a Dom Sebastião, rei português na época da publicação; a Narração, que é a viagem de Vasco da Gama e a História de Portugal, e o Epílogo, que é o cansaço e a desilusão do poeta”.

O palestrante criou uma maneira lúdica de transpor os mares traiçoeiros e invadir a Índia. Para funcionar como bússola, colocou na tela os versos selecionados, divididos em subtítulos e após contar a história heróica dos inúmeros personagens, declamava os poemas ricamente ilustrados com pinturas e esculturas do renascimento, arte da época. Toque de mestre. Aparte: a Taprobana, citada no começo da história é onde se situa atualmente o Sri-Lanka.

A esquadra que foi à Índia tinha quatro navios. Vasco da Gama levava a Nau São Gabriel, seu irmão Paulo da Gama conduzia a Nau São Rafael, Nicolau Coelho pilotava a Nau Bérrio e Gonçalo Nunes, criado de Vasco, comandava a nau dos mantimentos. Cada uma delas tinha um escrivão. As conquistas eram boas para o Rei e a Igreja, mas ruins para o povo. Na partida, as carnes embarcavam e as vísceras ficavam. Além disso, o país ficava desguarnecido, sem os jovens guerreiros, e entregue a sanha de invasores.

O orgulho e plenitude portugueses explodem em toda a sua coragem, pelos atos em si, além da genial capacidade narrativa de Luís Vaz de Camões, que tinha conhecimentos náuticos e filosóficos desde os gregos, tendo lido a mitologia romana, a Odisséia e a Ilíada, além de Eneida, de Virgílio. Parece que esteve em cada navio, enfrentou cada tormenta, cada fome, cada batalha. E dessa forma, novas culturas vão passando sem pudor, mostrando que os portugueses nada temiam, ainda que enfrentassem o escorbuto - falta de vitamina C -, com apodrecimento das gengivas, ou a perseguição de monstros furiosos, pragas dos deuses, mestres do ciúme e da intriga, conspirando a cada lançar de âncoras, mescladas aos obstáculos reais. Colérico, Júpiter transforma o Gigante Adamastor no Cabo das Tormentas, no extremo sul africano, e depois de transposto é nomeado Cabo da Boa Esperança. O maior empecilho da viagem fica para trás.

Camões teve de vencer a censura da Santa Inquisição, como nos disse o palestrante, além de agradar a Dom Sebastião, o Rei que patrocinou a obra. Então, a liberdade de criar tinha limites. O feito de Camões é memorável pela grandiosidade da sua obra, que se equivale àquilo que ele pretendia homenagear: uma viagem inédita e perigosa, com armadilhas e desafios transpostos por Vasco da Gama, cuja fama seria ainda maior do que a de Cleópatra. Sem contar a sanha dos ferozes anfitriões, que usavam de todos os ardis e armadilhas para barrar a visita e não ser simplesmente invadidos e saqueados por outras gentes, costumes e religião.

No começo, a intenção de Vasco da Gama poderia ter sido ampliar o comércio e trazer especiarias tais como cravo, canela, gengibre e açafrão, mas depois mostra vontade de conquistar e difundir o cristianismo.
O navegador só estava autorizado a deixar o navio quando chegasse ao destino final. Dentro da nau São Gabriel recebeu o rei de Melinde, uma cidade muçulmana, e lá contou os grandes feitos portugueses, ficando amigo do rei. Nessa ocasião, o seu irmão Paulo da Gamma explicou o significado da bandeira portuguesa e as cinco chagas de Cristo. As batalhas primitivas são contadas com a crueza das perfurações e esquartejamentos lavando rios com sangue amigo e inimigo. As imagens metafóricas do vocabulário são ricas, e, para um melhor entendimento, seria preciso um dicionário da época, embora o texto tenha sido diversas vezes atualizado. Muitas figuras históricas, entre ficcionais e mitológicas, a toda hora estão em cena, lentificando a compreensão.

Aquilo tudo, o luso Camões foi capaz de escrever e cantar. Nossa parte é admirar e tentar compreender. O episódio mais lírico é a história de Inês de Castro. Dom Pedro I, filho de Afonso IV, casa-se com Inês de Castro, contra a vontade do pai. Quando, na ausência do filho, ela é condenada a morte, gerando piedade. Ao chegar, Dom Pedro I fica furioso, luta por justiça e para se vingar mata todos os homicidas. Saudoso, proclama a amada como rainha, mesmo depois de morta. Ambos são enterrados em túmulos vizinhos. Os matadores são representados por esculturas de porcos com seus rostos humanos.

Antes de os navegantes retornarem a Portugal, cobertos de glórias, a ficção de Camões preparou para aqueles homens, sedentos de terra firme, boas comidas e mulheres nuas, no jardim de delícias, a Ilha dos Amores, um presente da deusa Vênus. Todo o bem de consumo estava à disposição, claro, depois de passar pela dura vistoria dos censores. A Igreja achou a cena erótica demais, mas considerou que os heróis portugueses mereciam o devido desfrute.

Márcio Adriano Moraes contou a certa altura, no último canto Camões diz assim sobre o Brasil: “Mas cá onde mais se alarga, ali tereis/ Parte também, co pau vermelho nota;/De Santa Cruz o nome lhe poreis;/Descobri-la-á a primeira vossa frota”.

Mesmo produzindo essa obra colossal e única, Camões morreu pobre. Bem depois foram construídos monumentos em sua homenagem. E que venham outros mais, para que possamos homenagear cérebros brilhantes como este, que mostram todo esplendor do Homo sapiens. Quem não foi ver os portugueses conquistar o mundo precisa pedir uma reedição ao professor Márcio Adriano. Por outro lado, quem leu o livro e se perdeu, pode voltar a lê-lo, seguindo as direções do grande mestre. Fazer a viagem ao lado de tão bom navegador dá para não perder nenhuma intriga, cena marítima ou em terra. Exagerado, o palestrante, não convida, instiga a um mergulho na História. Em água salgada. Uma apresentação que não pode ser apenas uma. Aguardemos a reprise.

PS: Após a fala do professor Márcio Adriano Moraes, a professora Dona Yvonne Silveira, presidente da Academia Montesclarense de Letras, falou de improviso, de pé, e ao microfone, relembrando as aulas que deu sobre o tema, décadas antes. Naturalmente, comparou a viagem de Vasco da Gama à Índia à chegada de Neil Armstrong a lua, pelos riscos e pela natureza única dos feitos. Ficamos encantados com a participação dela, pessoa iluminada, que faz cem anos no ano que vem.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   

2 comentários:

  1. Ótimo conhecer um pouco mais sobre esse monumento, que ainda não tive a ventura de encarar. Parabéns, Mara!

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    1. Desta vez consegui ler mais da metade, e pretendo terminar. Um clube de leitura como o nosso atiça a curiosidade e juntos conseguimos ampliar a possibilidade de vencer. Obrigada pela passagem e comentário. Até ler sobre os Lusíadas pode ser desanimador.

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