Um adeus para Miguel Borges
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Sinto-me no dever de comentar aqui as manifestações
de rua que estão pipocando nas principais cidades brasileiras, acuando a classe
política que não está entendendo bulhufas e, perplexa, morre de inveja porque
nem todos os partidos políticos juntos são capazes de mobilizar tanta gente.
Confesso que aquela passividade até então dominante me incomodava: será que
essa geração é castrada? Não, não é. Silvinho, um sobrinho-neto de 15 anos, me
escreve de Manaus contando, eufórico, como foi seu primeiro banho de rua. Ele
quer ser antropólogo. Começa bem.
O Brasil, ao aprender o caminho das ruas, acordou
com um vigor novo e forte. Essa é a notícia, a novidade. No entanto, não será
esse o tema de nossa conversa dominical, pois interesses jornalísticos nem
sempre coincidem com a nossa memória afetiva. É que não posso deixar o Miguel
Borges ir embora sem lhe dar um adeus. Convivemos quase diariamente, em 1968, quando ele era chefe de reportagem do
jornal O PAIZ, no Rio, e eu um 'foca'
ainda não amestrado.
Digo quase diariamente,
porque de vez em quando, eu não comparecia ao trabalho. Borges ia à loucura. Na
primeira vez, perguntou:
- O que foi que aconteceu?
- Meu pai morreu - respondi, compungido e
cabisbaixo, o que era absolutamente verdade. Apenas omiti a data: três anos
antes do episódio aqui narrado. Miguel me deu os pêsames, a pauta do dia e um
conselho: em casos como esse, eu devia avisá-lo por telefone.
Ele sabia que podia contar comigo. Quase sempre - olha
o 'quase' outra vez - eu o acompanhava madrugada adentro, pau pra toda obra,
ajudando-o a fechar o jornal. Isso porque o trabalho de repórter sempre me
deixava eletrizado. Na cozinha da redação, eu entrava em transe, ficava cego,
não via mais nada: só jornal. Respirava jornal, meu café da manhã era jornal,
almoçava jornal, merendava jornal, jantava jornal, dormia sonhando com jornal.
Enquanto fui repórter, o jornal era minha cachaça, uma droga, do qual dependia,
na qual era viciado. Fazia mal, é verdade, mas 'dava barato'.
Por isso, sempre fui explorado. As horas extras
nunca foram remuneradas, era tudo na base do entusiasmo, o que me levava, de
vez em quando, a tirar por conta própria um dia de descanso, que ninguém é de
ferro.
O velório da titia
Na segunda falta, matei minha avó Maria Elisa. Ela
estava enterrada havia mais de dez anos e, para atualizar o cadáver, entrei na
redação com um chumaço preto no bolso da camisa, de luto, como era costume na
época. Contei histórias dela lá do Maranhão, onde Borges havia vivido sua
infância. Falei que meu nome era uma promessa da vovó a São José de Ribamar,
que eu era o xodó da vovó, não podia deixar de ir ao velório, você entende?
- Porra - gritou o Borges - com todo respeito à tua
avó, por que você não telefonou dizendo que não podia vir?
Acontece que se eu telefonasse, Miguel Borges,
experiente jornalista, sabia como me convencer a ir trabalhar. Bastava acenar
com um fato novo que despertasse minha curiosidade. Nascido em Picos, Piauí, em
1937 - dez anos antes de mim - ele veio em 1955 para o Rio, onde atuou em
vários jornais: Tribuna da Imprensa, Jornal do Commércio, Última Hora, O Dia.
Cineasta, dirigiu o episódio Zé da
Cachorra no filme Cinco vezes favela
produzido pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, em 1962. Na época, já
havia dirigido Maria Bonita - Rainha do
Cangaço, Canalha em crise e Perpétuo contra o Esquadrão da Morte.
Depois, fez mais outros.
Um belo dia, numa das tantas faltas, quando apareci
diante de Miguel Borges, já havia esgotado todo meu estoque de parentes mortos.
Decidi abater, com um câncer fulminante, minha tia Conceição, que era freira, e
continuava vivinha da silva. Descrevi velório, cortejo fúnebre, coroas de
flores, lágrimas, sobrinhos inconsoláveis, missa de corpo presente cantada
pelas freiras Adoradoras do Preciosíssimo Sangue, com tanta riqueza de
detalhes, com tanto realismo, que eu mesmo já estava quase acreditando que
titia havia subido o Boulevard Amazonas em direção ao São João Batista.
- Ela tinha um peito menor que o outro e não tinha
filhos, eu era como se fosse seu filho, você me entende? - disse, ensaiando um
esgar, uma careta tristonha. Não lembro, mas acho até que deixei cair uma
lágrima furtiva.
Miguel Borges entendia. Escutou tudo calado, como
se estivesse em Picos, na caatinga brava, no carrascal, ouvindo histórias de
onça. Ele gostava de contar uma história, registrada em sua biografia escrita
por Antônio Leão da Silva Neto - Miguel
Borges: um lobisomem sai da sombra (2008), na qual o personagem, um caboco
cujo braço foi comido por uma onça, ganhou o apelido de "Chiclete de
Onça" ou "Resto de Onça".
Maria Bonita
Quando Miguelzinho tinha um ano, Maria Bonita, a
mulher de Lampião, tascou-lhe um beijo. Mais de 70 anos depois, ele contou a
seu biógrafo:
- Eu estava no colo da Paula, minha babá, uma
mulher bonita, gostosa, coxuda e perturbadora. Maria Bonita me viu nos braços
de Paula, e disse 'que neném bonitinho' e me deu um cheiro e um beijo. Posso me
gabar de que Maria Bonita me pegou no colo e me deu uma cafungada.
Contador profissional de causos, Borges sabia
identificar um narrador chinfrim, primário. Suspeitou que minha tia, a irmã
Conceição, ou não existia ou continuava viva.
- "Você é ator de segunda. Está mentindo"
- disse, com a autoridade de cineasta, narrador e ator. Ele havia interpretado
um personagem no filme Boca de Ouro,
de Nelson Pereira dos Santos. Usando a voz de chefe, seca e séria, fez elogios
à qualidade do meu trabalho - bom repórter, bom texto - à minha dedicação, às
horas extras e pererê-pão-duro, mas deixou claro:
- "Na próxima vez, peço teu desligamento do
jornal. Tou avisando".
Duvidei: um membro do Partidão não demitiria
ninguém. Eu havia visto o Zé da Cachorra,
episódio que ele dirigiu em Cinco Vezes
Favela, filme que marcou a estética do Cinema Novo e abriu os caminhos
trilhados por outros cineastas. Lá tinha tudo: grilagem, especulação
imobiliária, favela, organização popular, passividade e resistência, luta de
classes, corrupção, orgia, mulheres, elites podres.
Com essa avaliação, paguei para ver: ousei faltar
uma vez mais. Quando entrei na redação, Miguel Borges estava possesso, me
chamou, na frente de todo mundo, de irresponsável, de enganador, de
profissional inconsciente.
- Quem morreu agora? - perguntava aos berros.-
Fala: quem morreu?
Com medo de dar azar, não tive coragem de matar
minha mãe ou uma das minhas nove irmãs, todas vivas. Ainda me passou pela
cabeça fuzilar uma delas, a Pretinha, batizada Maria Aparecida, que sofria de
asma. Mas ele não ia acreditar. Seria uma morte inútil. Resolvi falar a
verdade:
- Ninguém morreu. Foi uma namorada. Faltei essa e
outras vezes pra sair com ela. Pode me demitir.
Zé da Cachorra
Já me sentia no olho da rua. No entanto,
surpreendentemente, Miguel Borges mudou o tom de voz, me deu um abraço
carinhoso e, com um largo sorriso, disse conciliador, deixando a redação
inteira estupefata:
- Namorada? Porra, Riba, por que você não avisou
logo desde o início? Pra mim, esse é o único motivo válido para faltar ao
trabalho: UMA MULHER. Tá justificado. A próxima vez, avisa antes. Agora, vai
trabalhar.
Lembrei que no Zé
da Cachorra, enquanto o grileiro cooptava o político corrupto, depois de
uma orgia, a câmara, ou seja os olhos do Miguel Borges escaneavam o corpo de
uma mulher, percorrendo-o de ponta à ponta.
Esse foi o Miguel Henrique Borges, 76 anos, o
menino beijado por tantas Marias Bonitas e que nos deixou nesta semana, vítima
de uma parada cardíaca. Morreu em São Lourenço (MG), onde vivia desde 1997.
Antes dele, se foram Felix Athayde, Newton Rodrigues, Joel Silveira. Ele é o
último dos grandes editores de O PAÍZ - um
diário vespertino que durou de agosto a dezembro de 1968, uma existência tão
fugaz que sequer consta na biografia de Miguel Borges, mas que marcou quem com
ele conviveu.
- Meu gordinho não tinha idade para morrer. E ele
estava muito feliz - declarou ao Globo
sua mulher, Maria Elisa Garcia, que o conheceu em 1984, na Banda de Ipanema.
No avião que me leva a um evento acadêmico em
Uberlândia, no Museu do Índio da Universidade Federal (UFU), enquanto tiro um
cochilo, ouço Borges me cobrar:
- Essa é a notícia. Por que você não cobriu as
manifestações de rua? Por que faltou? Quem morreu agora?
- O nosso gordinho morreu - respondo. - Meu texto
está de luto.
*
Jornalista e historiador
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