Moustaki sempre em maio
* Por
José Ribamar Bessa Freire
- "Em maio, tantas vezes, morremos" - canta Carlos
Drummond. Maio também morre conosco, cada ano, mas no ano seguinte ressuscita,
trazendo de volta suas manhãs luminosas, suas tardes "com rubor de incêndio",
suas flores ou folhas dependendo do hemisfério, além das eternas promessas de
que dias melhores virão.
Maio marcou as várias vidas de Georges Moustaki, cantor e compositor de
origem grega. Nascido Giuseppe Moustaki em Alexandria, no Egito, de pais
judeus, migrou para Paris, em maio de 1951, onde conheceu e fez amizade com
grandes nomes da "chanson française", entre os quais Edith
Piaf, com quem viveu um romance, e Georges Brassens, um dos maiores de sua
geração. A grande admiração a ele devotada levou-o a mudar seu nome de Giuseppe
para Georges Moustaki, com o qual ficou conhecido e ganhou fama.
Foi em maio de 1968 que ele se consagrou como uma das vozes daquela
revolução que explodiu na França, da qual se tornou símbolo. Uma de suas
músicas - Le Temps de vivre - fala do tempo da amada, a quem ele seduz,
mas também da utopia libertária pela qual ele foi seduzido:
- Vem, eu estou aqui, eu te espero, tudo é possível, tudo é
permitido. Vem, escuta essas palavras de liberdade que vibram nas pichações dos
muros de maio. Elas nos falam da certeza de que é possível um dia, tudo mudar.
Maio foi também o mês em que ele nasceu, em 1934, no dia 3, uma
quinta-feira. Agora, também numa quinta-feira, numa tarde de maio, dia 23,
morreu em Nice, na França, aos 79 anos.
As letras de suas canções românticas embalaram as reivindicações
libertárias dos jovens que desfilavam pelas ruas de Paris em maio de 68,
pedindo em alto e bom som um mundo mais justo e solidário, nas relações
amorosas, na distribuição das riquezas, consagrando o direito à felicidade como
um bem coletivo. "Sejamos realistas: tentemos o impossível”.
Moustaki foi embora como o jovem carteiro enamorado, personagem de uma
de suas canções – Le jeune facteur - que “partiu voando no céu azul
como um pássaro, enfim livre e feliz”. O amor perdeu seu mensageiro, aquele
que periodicamente nos trazia as palavras de amor.
Os latino-americanos que viveram na França nos anos 60 e 70 - salvo
algum policial infiltrado entre os exilados brasileiros – sentiram a morte do
‘carteiro’ Georges Moustaki como parte do fim dos sonhos que marcaram época e
como alguém da nossa família. Vários amigos me escreveram, chorosos.
Miriam, uma hispano-americana que vive hoje em Caracas, lembra que a
proximidade com o cantor se deve, talvez, ao fato de cada um de nós sermos um
pouco "métèque", personagem de uma balada romântica
‘autobiográfica’, que marcou essa identidade numa cidade cosmopolita como a
Paris dos anos 70: “estrangeiro vagabundo, mistura de gringo com
pau-de-arara, que tinha ar sonhador, cara de judeu errante, pinta de pastor
grego...”.
O tom anárquico em “Le métèque” desafia a representação amorosa
romântica assumindo que sua “boca bebeu, beijou e mordeu sem jamais saciar
sua fome” e que a sua “pele roçou todo mundo que usava saia”,
enfrentando com ironia seu destino sem a “menor chance de escapar do
purgatório”.
Outra amiga, Marilza Foucher, que mora em Paris, manda a notícia
dizendo: "Nosso grande Georges Moustaki nos deixou para sempre. Vou te
confessar que chorei... passei o dia curtindo suas músicas, ele nos deixa a
resistência dos teimosos utópicos". Ela lembra a tentativa, sem sucesso,
que nós dois fizemos há algum tempo para entrevistá-lo para o Diário do
Amazonas: "Só lamento que não conseguimos, mas lembras que ele foi
gentil e respondeu o email, explicando que estava viajando naquele
momento?".
A cantora Juliette Gréco, emocionada com a morte do amigo, disse que ele
era “... como todos os poetas alguém diferente, requintado, refinado e
elegante, possuía uma doçura infinita e imenso talento”.
As melodias de Moustaki dialogavam com outros gêneros de outras
geografias como o tango argentino e a música brasileira. Fez amizade musical
com Caetano Veloso, com Gilberto Gil com quem cantou Joseph, gravada em
português por Nara Leão, e com Chico Buarque, na versão de Fado Tropical
feita em homenagem à Revolução dos Cravos, em Portugal, onde era muito querido.
Gravou ainda uma versão em francês das Águas de Março, de Tom Jobim, e
uma versão divertida de "Balancê", apresentada por ele como "Eu
não sei dançar".
Aprendemos francês com as letras dessas canções, como lembra Miriam.
Moustaki dialogava também com as formas mais populares da música francesa. Tive
a sorte de testemunhar um gesto singelo de generosidade num domingo ensolarado
de julho de 1982, quando ele já era um cantor consagrado. Dois irmãos cantores
de rua - Les Frères Amara - tocavam, como faziam todos os domingos, na
Ilha de São Luiz, cercados por uma pequena multidão. Moustaki cruzou a rua e se
infiltrou no meio do público. Um dos irmãos anunciou a presença dele, que foi
aplaudido e depois pegou o acordeon, dando uma palinha, presenteando um
público que reconhecia nele a grande figura de maio de 68, como um ícone
libertário do compromisso com a vida.
Há três meses, já hospitalizado e sob respiração artificial, concedeu
sua última entrevista ao jornal Nice Matin, quando revelou que havia
trocado Paris pela cidade de Nice, no sul, para fugir da contaminação e do frio
da capital, onde vivia há mais de 40 anos.
Foi-se o poeta musical e com ele pedacinhos importantes de nossas
histórias. Fica a imagem de um musico artesanal, orgânico em todos os sentidos,
como não se faz mais. Não lembro mais qual foi a música que ele tocou na rua,
mas foi qualquer uma delas que me ajuda sempre a enfrentar os engarrafamentos
na ponte Rio-Niterói.
*
Jornalista e historiador
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