Do milênio passado
* Pedro J. Bondaczuk
Os mais jovens, se preconceituosos e néscios (nem
todos são), quando querem desmerecer alguém mais idoso, com mais de trinta
anos, dizem, torcendo o nariz: “Você é ultrapassado! É do século passado!
Melhor, é do milênio passado!”. E nós, que temos mais de trinta (aliás, na
verdade, mais de dez, abrangendo, portanto, esses mesmos jovens que dizem essas
bobagens), de fato somos.
E daí? Não fomos nós que construímos esse mundo, que
bem ou mal, ainda está de pé? O que herdamos daqueles que nos antecederam foi
muito pior. Até doze anos antes de se expirar o século XIX, por exemplo, aqui
no Brasil, era normal uma pessoa escravizar outra por causa da cor da sua pele.
Era, aliás, rotina tratá-la como animal irracional – comprá-la, vendê-la,
agredi-la, surrá-la etc. – e tudo isso feito com o beneplácito das leis então
vigentes.
Hoje, a despeito de existir escravidão disfarçada em
muitos lugares (inclusive em nosso País), a legislação prevê severas punições
para quem age assim. É verdade que muitos conseguem subornar autoridades e
continuar com sua torpe e covarde exploração, impunes. Mas esta é uma outra
história, que fica para uma outra vez.
Nunca, em tempo algum, as pessoas dispuseram de
tanto conforto e tantas facilidades, ditados pelo miraculoso avanço da
tecnologia, como hoje. Transportes rápidos por terra, mar e ar; telefone
celular, computadores, internet, rádio, televisão, alimentos saudáveis
assegurando crescente longevidade etc.etc.etc. E quem possibilitou tudo isso?
Foi essa geração, tão criticada e achincalhada, do “milênio passado”.
É certo que, a despeito da criação das Nações
Unidas, que se propunha a ser um fórum democrático e justo para impedir
agressões entre países e povos, guerras e “revoluções salvadoras” continuam
pipocando, aqui, ali e acolá, matando milhares de pessoas, em geral inocentes e
alheias às controvérsias dos poderosos (como os conflitos posteriores à
desagregação da ex-Iugoslávia, as invasões norte-americanas ao Iraque, os
ataques ao Afeganistão e por aí vai).
Mas nenhuma dessas insanidades sequer se aproxima
dos horrores proporcionados pelas duas guerras mundiais da primeira metade do
século XX (do Holocausto, por exemplo), que culminou com a maior chacina de que
se tem notícia, que foram as explosões nucleares que pulverizaram as cidades
japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Não foi, porém, esta geração a responsável
por tamanha atrocidade.
O mundo é perfeito? Claro que não! Seria uma
idiotice afirmar o contrário. Mas uma geração que mal chega à adolescência
nesta segunda década do século XXI, não deve nutrir preconceitos contra a que
a precedeu. Até porque, ainda nem teve tempo de dizer a que veio. Tomara que
não cometa os mesmíssimos erros das que a precederam.
Não me sinto nem um pouco vexado por haver nascido
no século passado ou, como queiram, no “milênio passado”. Já houve períodos
piores, muito piores, na história da humanidade. O que nos compete cuidar é
para que não venhamos a superar, em insânia, ganância e violência, os que hoje
(justamente) tanto criticamos e tão enfaticamente condenamos.
Eduardo Galeano escreveu, no livro “Um convite ao
voo”: “Milênio vai, milênio vem, a ocasião é propícia para que os oradores de
inflamado verbo discursem sobre os destinos da humanidade e para que os
porta-vozes da ira de Deus anunciem o fim do mundo e o aniquilamento geral,
enquanto o tempo, de boca fechada, continua sua caminhada ao longo da
eternidade e do mistério”.
Quem nunca ouviu, por exemplo, algum místico de
ocasião, mal-informado, afirmar esta imensa bobagem: “A mil chegará, de dois
mil não passará” (referindo-se ao mundo), garantindo, com ares de suprema
sapiência, que essa sandice está escrita na Bíblia (não está, evidentemente)?
No entanto... O novo milênio já completou a segunda década e
estamos todos aqui, vivinhos da silva.
Eduardo Galeano lembrou, ainda: “Em 1948 e em 1976,
as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos, mas a imensa
maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal
começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos
um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar
outro mundo possível”.
É isso o que nos falta: um pouquinho de otimismo, de
sonho, de delírio até, mas em sentido positivo. Não adianta, contudo, somente
projetar, sonhar, delirar e tentar adivinhar outro mundo possível e melhor. É
preciso agir, com sabedoria e bom-senso, para que isso aconteça.
É possível, a esta altura, nutrirmos alguma certeza,
qualquer que seja, quanto ao futuro? Temo que não! Tanto a humanidade pode
criar juízo e se regenerar, quanto... nem é bom pensar. Daí concordar (mais uma
vez) com Eduardo Galeano quando constata: “Temos uma única certeza: no século
XXI, se ainda estivermos aqui, todos nós seremos gente do século passado e,
pior ainda, do milênio passado”. E como estamos (ainda) aqui... é melhor que
nos conformemos.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Gostei de ser chamada a exercitar o meu direito de sonhar. Boa ideia. Depois de quase dois anos "ando procurando um jeito" de voltar a planejar. E executar, obviamente. Quanto às críticas entre gerações, elas são necessárias para motivar ambos os lados: um para se mexer e fazer alguma coisa e o outro para continuar se mexendo e fazendo.
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