A besta na jaula
* Por
Amilcar Neves
O ano é
1916.
O mês:
agosto.
O dia: a
sexta-feira 11.
O local:
uma sala escurecida, fedendo a cigarro, poeira e tinta, na rua Jeronymo Coelho
nº 5. Silenciosa e vazia, os sons e ruídos da cidade, escassos, não conseguem
vencer venezianas, vidros, postigos e as gastas cortinas aveludadas, menos
ainda as grossas paredes da edificação.
Um
barulho seco e brusco tira os móveis da modorra noturna. Embaixo, as máquinas
silenciaram há muito e o alarido dos moleques vai longe, anunciando as
maravilhas espantosas estampadas pelo jornal vespertino. Quase se pode dizer
que a cidade honesta se prepara para dormir. Aqui e ali se vão encerrando os
serões das famílias, as pessoas a se despedirem respeitosas. Logo o Teatro
Álvaro de Carvalho concluirá outra encenação de uma revista musical de vibrante
sucesso, escrita por consagrado autor da terra.
Nesse
silêncio ordeiro de gente devota e virtuosa, de cidade comportada, o barulho
embaixo se repete, agora mais seco e impaciente, e a fechadura da porta externa
cede sob a pressão, rangendo num guincho agudo que perfura a noite. A Ilha
treme um pouquinho, uma luz se acende na casa em frente, uma janela se abre no
sobrado e uma dona assoma sonolenta, o roupão descuidado, aberto, deixando à
mostra um seio de alabastro que jamais recebeu o calor do sol; coroando-o, um
mamilo escuro desponta impudente.
Oclândio
Ramos faz um sinal para Lindaura Consuelo e lhe dá as costas. Ela, por sua vez,
afasta-se do ar frio da noite e, em segundos, a luz do quarto no sobrado está
apagada.
Para
mesas, máquinas de escrever e cinzeiros atulhados de xepas de cigarro na sala
do nº 5 da Jeronymo Coelho, porém, a tensão aumenta a tal ponto, com o barulho
que vem de baixo, da porta da rua, que nem a poeira suspensa no ar abafado se
sente em segurança. Agora são como que passos escalando degrau a degrau. Um
vulto surge nebuloso no topo da escada.
Dito
vulto cruza o local como se conhecesse cada obstáculo como o corpo da amante,
mete a mão no trinco da porta de vidro, escancara-a, senta a uma escrivaninha,
acende um cigarro, liga um abajur de mesa, da sua mesa, pega uma lauda em
branco e alimenta a máquina de escrever. Analisa a folha vazia à sua frente e
então datilografa no alto da página, em capitais, as palavras A Besta na Jaula.
O vulto é
Oclândio Ramos, redator chefe e diretor comercial deO Estado, o “Jornal
de maior circulação em Santa Catharina”. Oclândio olha para a mesa vazia da sua
secretária, ao lado, e conclui que é melhor assim, “com a Lindaura Consuelo por
perto, e sem ninguém na redação, não ia sair matéria alguma”, e ele tinha que
trabalhar no furo que iria estremecer a cidade e, em seguida, todo o estado.
Oclândio
acabara de ver Joaquim Adeodato, recém-chegado à cidade pelo vapor Max, da
companhia de navegação de cabotagem do alemão Hoepcke. Mandou fotografar para o
jornal o último chefe dos fanáticos no Contestado: descalço, em mangas de
camisa, ladeado pelo tenente Cabreira e por um cabo do Regimento.
Vai ser o
furor do fim de semana!, avaliava Oclândio, a cidade vai falar nisso até o
Natal!
Entusiasmado,
“é isso que o povo quer”, considerou, pôs-se a teclar com fervor quase
religioso, numa fúria santificada:
“Desde
que se soube aqui, por via telegráfica, que havia sido preso, pelo tenente
Cabreira, o célebre bandoleiro Joaquim Adeodato, a população está vivamente
interessada em conhecer esse homem, sobre quem pesam os mais graves crimes.
“Ontem,
circulou na cidade a notícia de que o célebre chefe dos fanáticos vinha para
esta capital, a bordo do ‘Max’.
“A
curiosidade pública se acentuou, então, e grande massa popular se avolumou no
trapiche Rita Maria, onde atracou o ‘Max’, às 11 horas, esperando ver o
indigitado facínora.
“Mas, a
polícia, previdente, havia partido, em sua lancha, ao encontro do ‘Max’ e, no
canal do Estreito, o abordou, recebendo a bordo da ‘Santa Catharina’ o terrível
fanático que desembarcou, escoltado, pelo trapiche da Praia de Fora.
“Dali
Adeodato foi conduzido à cadeia pública, onde está recolhido.
“Mesmo
assim, pelas ruas por onde transitou a escolta que trazia o indigitado
criminoso, foi se reunindo grande número de curiosos que vieram, na retaguarda
da escolta, acompanhando Adeodato até a cadeia.
“Adeodato
será interrogado hoje pelas autoridades.”
Oclândio
recostou-se satisfeito na cadeira, jogou os olhos sobre o texto fresco, acendeu
o oitavo cigarro, pensou com volúpia nos seios brancos de mamilos pretos e
atrevidos de Lindaura Consuelo e sorriu de bem com a vida.
Sob a
mesa, no cesto de lixo, amassado com raiva e picotado em dezenas de fragmentos,
jazia o texto de duas colunas da entrevista exclusiva que “esse imbecil do
Teotônio Almeida”, correspondente em São Francisco, conseguiu com Adeodato, “o
sicário e temível assassino do Contestado”, na cadeia pública da cidade.
Começava
assim, a matéria: “Nós, que esperávamos ver nesse instante o semblante perverso
e hediondo de um bandido, cujos traços fisionômicos estivessem a denotar a sua
filiação entre os degenerados e os desclassificados do crime, vimos, pelo
contrário, diante de nós, um mancebo em todo o vigor da juventude, de uma
compleição física admirável, esbelto, fronte larga, lábios finos, o superior
vestido de um buço pouco denso, cabelos negros, olhos de azeviche, pequenos e
brilhantes, dentes claros, perfeitos e regulares, ombros largos, estatura
mediana, tez acaboclada e rosto levemente alongado”.
- Porra!
– exclamou Oclândio Ramos no meio da redação vazia. – Por que cargas d’água o
bosta desse
Teotônio queria fazer de Adeodato um ser humano, caralho?
· Amilcar
Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, membro da Academia
Catarinense de Letras.
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