Stradelli: as vozes da floresta
* Por
José Ribamar Bessa Freire
O rio
fala, a floresta fala e os índios falam através das fotos que o conde italiano
Ermanno Stradelli (1852-1926) fez na Amazônia, no século XIX. Essas vozes serão
ouvidas em São Paulo, a partir desta quarta-feira, 10 de abril, quando depois
da abertura da exposição organizada pelo Instituto Italiano de Cultura no
Memorial da América Latina, estreará o filme "O filho da cobra"
do cineasta italiano Andreas Palladino, seguido de mesa-redonda com
pesquisadores italianos e brasileiros. A exposição fica no Pavilhão da
Criatividade, até o dia 20 de maio e bem que merecia ser levada depois a
Manaus, junto com o filme, para ser apreciada pelos amazonenses.
Foi
justamente lá, na periferia de Manaus, que Stradelli morreu, solitário e pobre,
num casebre improvisado em leprosário. Foi enterrado no cemitério de
Paricatuba, em 24 de março de 1926. Ele nasceu rico, num castelo na Itália,
viajou para o Amazonas onde viveu mais de 43 anos. Com recursos próprios,
percorreu florestas, rios e igarapés, aprendeu a falar o Nheengatu e se
apaixonou pelas histórias que os índios contavam. Coletou e registrou mitos. No
final, contraiu lepra. Com o corpo deformado pelas chagas, foi enxotado de
hotéis, de pensões e até mesmo de hospitais, segundo seu biógrafo, Câmara
Cascudo, que destaca o legado de imagens e narrativas registradas.
As fotos
Tive a
sorte, em 2008, de visitar o Colégio Romano onde Stradelli deu palestras sobre
o Amazonas. Guiado pelo documentarista Andrea Palladino, naquela ocasião
consultamos nos arquivos da Sociedade Geográfica Italiana, em Roma, mais de 80
fotos das expedições do Conde pela Amazônia entre 1887 e 1889, algumas
amareladas pelo tempo, mostrando rios, paisagens, índios, barcos, malocas,
Manaus e suas ruas, avenidas, praças, a catedral, o porto. Numa delas, com uma
legenda bem humorada feita pelo Conde - Como se acende um fósforo - aparece
o botânico Barbosa Rodrigues, vestido de paletó e gravata, no meio do mato,
entre os índios Waimiri.
Para essa
exposição "A Amazônia de Stradelli - rios, povos e lendas sob o olhar de
um explorador italiano" foram selecionadas 64 fotografias, mapas e cartas
originais do Conde, que viveu com os índios e registrou o que viu. Ele entrava
nas aldeias com sua farmácia portátil, equipamentos topográficos, caixas para
recolher material ornitológico e entomológico, máquina fotográfica, microscópio
e outros aparelhos que, inicialmente, assustavam os índios. Ele, então, levava
cada índio para ver os instrumentos, tocar neles e verificar como funcionavam.
Dessa forma, o tuxaua Mandu descobriu que “a máquina fotográfica servia
também para matar formigas”, quando observou que os ácidos fixadores caídos
em cima de um formigueiro agiram como um poderoso formicida.
- "Sou
fotógrafo e minha primeira obrigação é para com o público pagante. Assim é o
mundo" - escreveu Stradelli para a Sociedade Geográfica Italiana no
dia 4 de março de 1889, explicando que gostaria de ter escrito um relatório
sobre o Purus, mas não havia sido possível. Acrescentou: "Como, por
enquanto, sou fotógrafo, ao invés de relatórios, envio-lhes fotografias"
- conforme carta publicada por Teresa Isenburg, em seu livro "Naturalistas
italianos no Brasil".
Mas quem
começou a se interessar pela vida do conde Stradelli foi Câmara Cascudo, em
1930, quando viu três cadernos volumosos com milhares de verbetes escritos à
mão. Era o dicionário Nheengatu-Português, Português-Nheengatu. Impressionado
com a obra e com a vida trágica do autor, Cascudo decidiu correr atrás de mais
dados. Numa carta ao então governador do Amazonas, Álvaro Maia, Câmara Cascudo
se queixa da cortina de silêncio e da inexistência de documentos. Sobre o seu biografado,
ele encontrou apenas dois artigos publicados, um no Diário Oficial do
Amazonas, e outro em O Jornal de Manaus, além de breves notas em
quatro livros.
- “Quase
nada se sabia dele. Morrera em 1926 e seu nome se diluíra na sombra, como uma
inutilidade. Raras citações. Raríssimos informadores. Percentagem altíssima em
erros, enganos, omissões” - escreve Cascudo, que não encontrando documentos
fidedignos, resolveu criá-los. Escreveu oitenta cartas a familiares e amigos de
Stradelli: professores, jornalistas, viajantes, padres, bispos, embaixadores.
Muita
gente respondeu com depoimentos, entre os quais o padre jesuíta Alfonso
Stradelli, o caçula, que lembra as cartas mensais enviadas pelo irmão mais
velho à sua mãe, com notícias detalhadas das viagens pela Amazônia e histórias
contadas pelos índios. Embora o arquivo particular da família não tivesse sido
consultado, o material coletado permitiu traçar um perfil do personagem. A
infância de Stradelli no castelo de Borgotaro – residência senhorial da família,
os estudos na Universidade de Pisa, os primeiros versos, o encantamento com os
índios, as rotas e a cronologia das viagens pelos rios da Amazônia – tudo isso
ganha contorno mais nítido no livro de Cascudo.
Memória do Conde
Concluída
a biografia, seu autor convenceu o Governo do Estado do Amazonas a editá-la em
1936, com o sugestivo título – Em Memória de Stradelli. Esse livro teve
o cuidado de revelar como é que o Conde fazia quando queria conhecer algum
aspecto da vida da Amazônia: o trabalho de campo. Ele mergulhava na realidade e
ia ver de perto, conversar com as pessoas, anotando e fotografando tudo.
Stradelli
intuiu que o pesquisador decidido a conhecer uma sociedade que lhe é estranha
devia partir do interior dela, impregnando-se da mentalidade de seus
integrantes e esforçando-se para pensar na língua deles. Para entender um
ritual onde rolava o caxiri, Stradelli deixou que os índios pintassem o seu
corpo e dançou convictamente com eles na maloca de Miriti-Cachoeira, “bebendo
repetidas cuias de capy entontecedor”. Aprendeu as línguas indígenas e
viveu com os Tukano e Tariana, observando e registrando suas
tradições. Com eles, comeu paca moqueada, beiju, quinhapira e “molhou os
lábios no molho estonteante das pimentas”.
O
resultado foi a publicação de textos dispersos por jornais e revistas
especializadas da Itália e do Brasil, um poema sobre Ajuricaba, um vocabulário
em língua Tukano, o dicionário clássico de Nheengatu, mapas geográficos do
Amazonas, e versões variadas de mitos indígenas. Stradelli revelou que Jurupari
era um herói civilizador, criador dos usos, leis e preceitos transmitidos pela
tradição oral, retirando dele a imagem do diabo criada por missionários.
O filme
de Andrea Palladino, que será lançado com a presença do diretor, mistura documentário
e ficção para contar, em 50 minutos, a história de Stradelli, o filho da
Cobra Grande, que ainda hoje, mais de cem anos depois, continua sendo
lembrado pelos xamãs do Alto Rio Negro. Descreve como a única empresa de
navegação que fazia a ligação com a Europa, em 1923, recusa a levar o Conde
leproso para a Itália, o que o obriga a se internar no leprosário do Umirizal,
onde conhece Nininha, filha de ex-escravos. É ela que, no documentário, narra
as histórias de Stradelli que lhe ensina noções básicas de Nheengatu, a
primeira língua dos amazonenses. Para isso, o documentário se baseia nos textos
dos diários de Stradelli.
Muitas
dessas questões serão discutidas nesta quinta-feira, 11 de abril, no Memorial
da América Latina, em São Paulo, durante a Jornada de Estudos: Ermano
Stradelli na Amazônia que acontecerá no Auditório do Anexo dos
Congressistas, com a presença do Cônsul Geral da Itália, Mauro Marsili, do
diretor do Istituto Italiano di Cultura Attilio De Gasperis e do
presidente da Società Geografica Italiana, Franco Salvatori.
Os
organizadores convidaram especialistas de peso como Sérgio Medeiros, da
Universidade Federal de Santa Catarina, que tem várias publicações sobre o tema
e vai falar sobre "O mundo das imagens na Lenda de Jurupari de
Stradelli". Entre os pesquisadores da Itália estão Nadia Fusco, diretora
do Acervo Fotográfico da Sociedade Geográfica Italiana, Ettore Finazzi Agró, da
Universidade La Sapienza de Roma e Aniello Angelo Avella que estarão
conversando com pesquisadores do Amazonas, entre os quais Antônio Loureiro,
presidente do Instituto Geográfico Histórico do Amazonas, Selda Vale da Costa e
este locutor que vos fala.
*
Jornalista e historiador
Aproveitando o tópico, para quem possui android existe um dicionario de nheengatu https://play.google.com/store/apps/details?id=simbio.se.nheengare
ResponderExcluir