Princípios em conflito
* Por Mara Narciso
Quando mergulho no comer compulsivo, pior à noite, estou buscando a
serenidade que perdi no transcorrer do dia. Alimentar em excesso é meu refúgio,
e não me faço de rogada. À meia luz, vou buscando os alimentos disponíveis e
com eles vou fazendo a festa, a minha festa solitária de mulher madura e
insatisfeita. Não quero me ver e nem ver o resultado da minha briga com meus
sentimentos. Por arma evito o espelho. É assim que consigo administrar as
dúvidas que carrego comigo.
Como professora do ensino básico, eu procurei educá-lo dentro dos
princípios cristãos, mostrando que vale a pena ser bom, respeitar a autoridade
e a propriedade, aceitar o trabalho e amar ao próximo. Eu ensinei aquele
menininho a ler e escrever, mas também a cuidar de si, da casa, da escola, da
cidade, do que é de todos. Ensinei-lhe bons sentimentos e despertei-lhe a
curiosidade para avançar nos estudos. Ele mora na favela, local onde está
incrustada a escola que leciono. Nela sou respeitada. Sinto isso quando chego e
quando saio. Ganho pouco e tenho vida difícil, pois a condição de professora é
sabida por todos. Apesar dos percalços, ensino há quase 25 anos, e pouco
reclamo. Embora queira, tenho medo de me aposentar. Deveria, no entanto, ao
sair da escola a cada dia, deixar lá os meus problemas e dilemas profissionais.
Não consigo deixar.
Os meninos-maus da comunidade foram meus alunos, e agora eu ensino aos
filhos deles. De vez em quando aparecem por lá. Chegam e logo se impõem pela
aparência e atitudes: forçam o olhar, intimidando. Algumas vezes chegam em
dupla ou trinca. Um deles, em especial, perturba-me quando se aproxima de mim,
fora da sala de aula. É o líder do grupo. Tem 26 anos e o seu filho de sete é
meu aluno. A maneira de o chefe se comportar muda completamente quando estamos
a sós. Sugere um menino frágil que aspira por atenção e cuidados. Tem um olhar
pidão e voz sedutora que me sensibilizam para o que de fato quer: ser
compreendido e aceito. Sem a presença de olhares indiscretos – os acompanhantes
ficaram lá fora -, ficamos conversando. Confessa seus medos e dúvidas e fala o
quanto lhe custa manter agarrada a face aquela imagem de maldade. Mesmo quando
não quer ser cruel precisa sê-lo, para se manter no comando.
Conta como gostaria, caso pudesse, de largar aquela vida de crimes e ser
alguém comum e livre. A fama e o poder eram alvos a ser alcançados, e como os
tem, já não os quer. É prisioneiro de uma situação que criou e sabe que só sai
dela morto. Também viverá pouco. Está passando da média de idade de encontrar o
fim: prisão ou cemitério. É conhecido em todo o bairro. Quem o vê abaixa os
olhos com medo. Tal gesto o faz explodir-se em confiança. As disputas por
território são constantes, além de problemas com a polícia.
Entre ele e eu há uma proximidade constrangedora. Por aceitar seus
crimes, entro em parafuso. Fico em crise quando compreendo seu lado vulnerável.
Confunde-me ver que não é uma estátua. Conta-me seus pavores. Ouvindo-o narrar
detalhes das arrumações junto aos rivais e a lei, fico dividida. O momento de
carinho de mãe com seu filho errado ou a busca da ovelha desgarrada acontece
entre professora e ex-aluno. Eu o tranqüilizo, alisando seus cabelos, e então
ele se vai, quase relaxado até a porta, e não mais. Amarra na cara a máscara da
coragem, reassume a condição de agente do mal, e some na quase sombra, seguido
pelos seus comparsas.
Já anoiteceu. As últimas crianças deixaram a escola. Pego minhas coisas
e saio em passos rápidos. Sigo para casa. Não, não abandonei meus princípios,
bases da minha vida e conduta. Reflito, recordando-me dos tantos
questionamentos. Depois de muito pensar, minhas certezas já não são as mesmas:
eu não o vejo como um menino-mau. Consigo enxergar um lado bom, e me entupo de
comida em busca de alívio para esta dualidade. Meu relato é sincero e
imparcial. Enquanto meu peso cresce, reconheço que não preciso convencer a
ninguém sobre aquilo que sinto. Atirem pedras. Não serei perdoada por suportar
o lado errado. Sei que qualquer dia ele voltará à escola para outra sessão de
humanização. E ficarei feliz em ser capaz de atendê-lo uma vez mais.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
A compulsão alimentar e possivelmente a obesidade mórbida como consequências nefastas das mazelas sociais. Fictício ou não, um relato pungente e certamente muito próximo do que você deve vivenciar diariamente em seu consultório. Parabéns, Mara, por mais este texto-denúncia. Abraços.
ResponderExcluirUsei o pretexto do comer compulsivo para mostrar o outro lado dos traficantes de drogas, àquele que não é visto. Agradeço a atenção e carinho, Marcelo.
Excluir