Cometi um erro,
admito
* Por Mara Narciso
No norte de Minas há cidades pobres, recém-emancipadas, onde vivem
crianças carentes e desnutridas, junto com seus pais modestos e na mesma
situação nutricional. A desnutrição pode impedir o crescimento dessas crianças
que se mostram bem menores do que outras da mesma idade. As mães ficam aflitas
em ver o tempo passar e a criança não se desenvolver. Elas mesmas, pequenas e
magras, chegam a Montes Claros, a maior cidade da região, trazendo os filhos
para tratamento. É o caso de Tereza, mãe de Cássia. Com a ajuda da Secretaria
de Saúde da sua cidade, veio com a filha verificar a causa de ela estar tão
pequena. Tem oito anos e parece ter quatro. Olhar esperto, costelas visíveis, a
menina de cabelos alourados, típicos de quem passa fome, segue as determinações
do médico, no caso eu, que a examino.
Mesmo diante das evidências de falta de crescimento devido à
desnutrição, é preciso descartar outras causas. Solicitei exames de sangue e
radiografia da mão, para verificar a idade óssea, ou seja, o amadurecimento do
esqueleto. É tão difícil e caro vir de tão longe, tudo está tão atrasado, o
tempo urge. Então, fica-se encurralado entre melhorar a alimentação (se isso
não fosse um delírio) e verificar se o crescimento acontece, ou se fazer já um
estudo mais amplo. O teste de hormônio do crescimento se faz necessário devido
à grande defasagem, com estatura fora do gráfico. Espera-se que haja falta
desse hormônio. O correto é o valor de 0 a 5, sendo que estando zero pode ser
normal. Então se faz o teste da clonidina, ou outro teste de estímulo qualquer,
para ver se aumenta para 7. É arriscado porque esse medicamento abaixa a
pressão, dá sonolência e às vezes vômitos, precisando ser feito sob supervisão
médica. Colhe-se o sangue para dosar o hormônio basal, se dá o remédio e torna-se
a colher nos tempos 60 e 90 minutos para novas dosagens.
Dias depois a mãe vem com os resultados, porém neles não estava escrito
hormônio de crescimento e sim cortisol, que é um dos hormônios da suprarrenal.
Comentei o fato, explicando que foi dosado o hormônio errado que não tinha nada
a ver com o remédio tomado. Então, a mãe voltou ao laboratório, local onde a
atendente rasgou o resultado e fez nova folha, porém colocando o nome hormônio
de crescimento onde antes havia cortisol, e na frente os mesmos valores do
papel anterior. Eram valores superiores a 45 até 60, que não são compatíveis
com falta de hormônio de crescimento. A mãe manifestou o desejo de fazer o
exame noutro laboratório, pois não se animava a colocar a filha em risco, onde,
aparentemente, não sabiam o que estavam fazendo.
A mulher, mal trajada, e falando baixinho, era a humildade em pessoa.
Miúda, olhava para mim, em desalento. O dinheiro para o exame tinha sido pago
pela prefeitura da cidade dela, e Tereza sabia que não o conseguiria novamente.
Era preciso revê-lo. Liguei para o laboratório e pedi para falar com o
proprietário. Ele não estava. Expliquei o caso para a atendente, contando que
era a médica da criança. Ela fingiu não entender o que se passava. Garantiu que
o erro era apenas de digitação e que o exame tinha sido feito corretamente. Ao
saber que a mãe queria o dinheiro de volta, falou de forma grosseira que não o
devolveria.
O dono do laboratório me telefona, e não aceita que havia sido cometido
nenhum erro. Arrogante, falou com empáfia ter se formado no Hospital Albert
Einstein, e não na Unimontes, Universidade Estadual e Montes Claros, como se
fosse demérito profissional ter-se formado nela. Retruquei que ele poderia até
ter se formado em São Paulo, mas estava muito mal assessorado. Falei também que
a atendente era mal-educada e o laboratório tinha destruído as provas do erro,
tentando escamotear os fatos. Ele não gostou, ficou bravo, e falava exaltado,
bem no momento em que a mãe entrou no recinto. Soube disso depois. Diante da
minha recusa em aceitar aquela historinha mal contada, prometeu entregar o
dinheiro. Menos mal
Ontem revi Tereza, a mãe da menina. Ela tinha refeito o exame de Cássia, mas estava sem o resultado. Tinha vindo trazer sua mãe à consulta e disse ter ficado fortalecida com minha intervenção, na defesa dela e da menina, pois chegou a ouvir a gritaria do bioquímico quando lá chegou. Fez o jogo a meu favor e contra o laboratório no seu ciclo de amizades. Não fico feliz. Pessoas sobem no salto, esmagam gente sem voz e ainda querem ter razão. A cada meia hora nós médicos temos um problema e precisamos encontrar uma solução. Muitas vezes conseguimos. Noutras não.
*Médica
endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de
Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora
do livro “Segurando a Hip
Que coisa não, Mara? É muito bom ser colega neste espaço de uma profissional que honra o juramento de Hipócrates. Parabéns, Doutora!
ResponderExcluirProcuro acertar, sempre respeitando as pessoas, mas nem sempre consigo. Erro muito também. Não é fácil lidar num ambiente onde a arrogância impera. Obrigada, Marcelo.
ExcluirVocê não viu nada, Mara!
ResponderExcluirAcredito que há excelentes profissionais, mas
no meio desses crápulas, fica difícil!!!
Há muita gente que não sabe trabalhar, José Calvino, embora a maioria seja profissional esforçado. Agradecida pela presença.
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