* Por Marta Goes
Minha admiração por Laïs de Castro só ampliou após a deliciosa leitura de seus contos, do livro “Sirva o coração em bandeja de cristal líquido”. Como jornalista (premiadíssima, por sinal) já a conhecia de longa data, inclusive trabalhamos em editoras por duas oportunidades — pena que nunca na mesma redação. Ao receber o livro da assessoria de imprensa (Parceria 6), fiquei muito contente em saber que Laïs já havia lançado outro livro anterior a este, Um velho almirante, e sua carreira literária está a pleno vapor! Não é para menos: com uma linguagem ágil, de frases curtas (influência talvez do jornalismo, que ela domina tão bem) e a capacidade de sintetizar idéias, Laïs envolve o leitor já na primeira página. Intercalando o narrador em primeira e terceira pessoa, seus contos colocam o leitor dentro da história. A autora brinca com as palavras, suas sonoridades e rimas e com isso aproxima a prosa da poesia:
“Parte de mim não desce o morro, vou desacordada, o sangue estancado, o tempo furtado, o beijo frutado do amor. Vestida de trapos, o coração em trapos, tiras de pele, de pano e sarcasmo, ironia da vida. Quem mais do que eu pode ser feliz se sou tua, ninguém”.
Nos 27 contos, o narrador aparece tanto na primeira pessoa (“Chorei por ele ter partido tão cedo e pela morte violenta”) como na terceira (“Era uma mulher densa, ossos fortes, músculos fartos, como os de um búfalo”). Quem narra também pode ser um homem ou uma mulher, das mais variadas idades. O amor é o que une todas as histórias, o amor e como esse sentimento interfere, modifica e transforma a vida dos personagens.
Todo o conto abre com uma citação de autores consagrados, que faz alusão à história a ser contada. Em Batom Antigo, é a história da moça que não gosta de batom, usa amora para tingir os lábios e está à espera do príncipe; solidão é o que a define e Laïs abre o conto com Victor Hugo: “Todo o inferno está contido numa única palavra, solidão”.
O leitor, já enredado nas tramas e histórias comoventes, também se delicia com os recursos linguísticos utilizados pela autora. Ela usa bordões, repetidas vezes, o que ajuda a delinear o personagem ou enfatizar uma ideia (“Todo mundo é igual e é isso mesmo”, ou então “Eu não disse isso, mas não foi isso que eu quis dizer”). No conto Abadá, que narra as aventuras de uma “mulatona gostosa, dourada, de carnes firmes”, a autora coloca na boca da protagonista diversos ditados baianos, como “Na Bahia, peixe que distrai vira filé” ou ainda “Na Bahia, quem tem medo morre cedo.”
Poderia ficar aqui por muito mais citando os personagens cativantes, as tramas envolventes ou as criativas frases/versos de Sirva o coração em bandeja de cristal líquido. Mas não posso terminar esse pequeno olhar sobre a obra de Laïs de Castro sem salientar mais dois contos. O primeiro, Botinas Marrons, a saga de Marina, a “matrona de 48 anos, seis filhos e o marido meio paradão” que administra a fazenda e a vida de toda a família. O narrador começa contando a história daquela mulher forte e destemida e por fim confessa: “Não aguento guardar segredo: esta senhora era minha avó. Enfim, a avó que todo menino queria ter”. A identificação foi imediata, me transportei no ato para a minha infância passada na chácara de meus avós. Aquela dona Mariana (“a maior ecologista que se conheceu, sem nunca ter ouvido falar em ecologia”) tem muito da dona Juracy, minha avó que viveu 102 anos e foi um exemplo de vida. E por último ressalto O Adeus Mais Triste, que a autora descreve o fim de um grande amor: quem não viveu tal inquietação?
“Em que momento da convivência esquecemos o respeito, a solidão, a paciência, o entendimento? Em que instante da viagem abandonamos a mala que carregávamos, felizes, aquela mala prenhe de alegria? Tédio. Perguntas. Mesmo assim, nessa casa distante, pequena e melancólica, lembro de você e me sinto melhor.”
* Jornalista, escritora e dramaturga
Nenhum comentário:
Postar um comentário