sábado, 2 de fevereiro de 2013

Bispo Aguirre1

* Por José Paulo Lanyi


CHEFE DA GUARDA- Sede bem-vindo, senhor, fizestes boa jornada?

BISPO AGUIRRE- Assim, assim... Demos com um trânsito dos infernos. A Marginal estava um caos. Greve dos cocheiros, para variar.

CHEFE DA GUARDA- Isso é coisa do José Princesa, aquele ateu sem Deus!

BISPO AGUIRRE- Acaso sabes por que venho a esta fortaleza?

CHEFE DA GUARDA- Recebi os informes, reverendíssimo. Devo saber de algo mais?

BISPO AGUIRRE- Limita-te ao que já conheces. (Senta-se) És um avaro, capitão?

CHEFE DA GUARDA- Não senhor, reverendíssimo. Sou católico! E praticante!

BISPO AGUIRRE (levanta-se e berra)- Pois serve a Santa Madre Igreja e traz-me uma jarra de vinho! (subitamente calmo) Tenho sede, tal qual Nosso Senhor...

CHEFE DA GUARDA (à porta, para fora)- Guardas! Vinho para o bispo!

BISPO AGUIRRE (sentando-se)- E brioches.

CHEFE DA GUARDA- E brioches!

BISPO AGUIRRE- Amanteigados.

CHEFE DA GUARDA- Amanteigados!

BISPO AGUIRRE- Com uma pitadita de canela.

CHEFE DA GUARDA- E uma pitadita de canela!

(Volta-se para o Bispo Aguirre, que se senta)

CHEFE DA GUARDA- Perdoai-me os maus modos, reverendíssimo. Não é sempre que tão nobre presença vem honrar a nossa fortaleza.

BISPO AGUIRRE- E não te acostumes! Não sou dado a visitar pocilgas! São missões como esta que tornam o sacerdócio tão penoso... Falando em penoso, atropelamos um galo aqui nos arredores. (persignando-se) Que São Francisco o tenha.

CHEFE DA GUARDA (à parte)- Eu mato o Suplício!

BISPO AGUIRRE- E como está o nosso prisioneiro?

CHEFE DA GUARDA- Do jeito que a vossa reverendíssima ordenou. Como manda o figurino! (Sorri discretamente satisfeito consigo mesmo. Entra o Soldado 1 com uma garrafa, copos e uma bandeja coberta) (para o Soldado 1) Deixa aí! Eu mesmo servirei o bispo! (Sai o Soldado 1. Chefe da Guarda serve o vinho. O Bispo Aguirre apanha o copo, sem provar a bebida)

CHEFE DA GUARDA- Ireis comer os brioches agora, meu senhor?

BISPO AGUIRRE- Que achas? Que os pedi para deixá-los repousar na bandeja?

(Chefe da Guarda dá uma olhadela sob a toalha )

CHEFE DA GUARDA (antes de dirigir-se à porta)- Com a vossa permissão,

senhor! (à porta, para fora) Guarda!

(entra o Soldado 1)

CHEFE DA GUARDA- Eu te pedi brioches para o bispo e você só me trouxe um!

GUARDA- Era o que havia lá na cozinha!

CHEFE DA GUARDA- E as compras que mandei fazer hoje cedo?

GUARDA- Sumiram, senhor!

CHEFE DA GUARDA- Como, sumiram?!

GUARDA- Isso é lá com o intendente, senhor!

BISPO AGUIRRE- Chefe da Guarda! Chefe da Guarda! Onde estão os meus brioches? Não

vais querer que eu mesmo os apanhe!

(Chefe da Guarda dispensa o Soldado 1)

CHEFE DA GUARDA- Perdoai-me, senhor!

BISPO AGUIRRE- Não vais me dizer que não há brioches!

CHEFE DA GUARDA- Há, sim, reverendíssimo, mas... apenas um... É que estamos com pouca provisão e...

BISPO AGUIRRE- E o que acontece com o dinheiro que El-Rey destina a esta

fortificação?

CHEFE DA GUARDA- Dinheiro? Mas nos vossos informes havia instruções para nos

virarmos este mês com o que tínhamos.

BISPO AGUIRRE- Ora, nada mais quero saber! Anda logo com esse brioche!

(Bispo toma um gole do vinho e cospe-o. Dá um grito histérico e levanta-se)

BISPO AGUIRRE- Toma-me por ordinário?! Nem Judas merece tal beberagem! (levanta a

toalha e pega uma broa) O que é isto?

CHEFE DA GUARDA (apavorado)- Um brioche, senhor! (Bispo Aguirre anda em direção ao Chefe da Guarda mostrando-lhe a broa) Um brioche?! Um brioche?! Chamas esta broa amanhecida de brioche?! Um brioche é um pãozinho muito fofo, mas muito fofo, fofinho! Feito de farinha de trigo, fermento, manteiga, sal e ovos! O que me trouxeste foi uma broa! Uma broa é um pão arredondado feito de fubá, mas nunca um pãozinho muito fofo de farinha de trigo! Entendeste?!

CHEFE DA GUARDA- Sim senhor! Um pãozinho fofo de farinha de trigo!

BISPO AGUIRRE (mais calmo)- Muito fofo.

CHEFE DA GUARDA- Fofíssimo, senhor!

BISPO AGUIRRE- Muito bem! (pega a jarra e serve-se do vinho) Agora chega de tolices. Leva-me ao prisioneiro.

1- Da peça “A Masmorra”, de José Paulo Lanyi, Fernando Mariz Masagão e Sergio Carvalho Filho.

(*) José Paulo Lanyi é jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe", da peça "Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog) e da coletânea “Teatro de José Paulo Lanyi e Outros Loucos” (no prelo), todos da editora O Artífice. Trabalha com o músico paulistano Flávio Villar Fernandes, com quem compôs a trilha “Invernada” e a sinfonia “Atlântica”.

Um comentário:

  1. O que é o autoritarismo e o seu contraponto, a subserviência. Ambas as instituições lidam com o mandar e ser mandado. Com o tempo se acostuma.

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