quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Amor nem sempre correspondido

Quem ouve o antológico tango “Mi Buenos Aires querido”, composição de Carlos Gardel em parceria com o paulistano Alfredo Le Pera, pensa que o cantor, no período em que passou no exterior, se consumia de saudades da cidade que louvou com tamanha paixão e que não via a hora do regresso. Mas não era exatamente isso o que o artista sentia. Pelo menos é o que se depreende de uma carta que escreveu, quando estava na França, em 1930, a um amigo jornalista na Argentina. Nela, Gardel afirmou, textualmente: “Depois de ter conhecido Paris, depois de ter visto o que é a Costa Azul, depois de ter gostado dos aplausos dos reis, Buenos Aires não me satisfaz de todo... Não é que ela me desgoste, ou goste menos dela... Mas cansa... É terrivelmente monótona nossa cidade... A culpa é de nós mesmos, os argentinos e nossa seriedade funerária... A gente se diverte melhor na Europa... Mas se algum estrangeiro me dissesse essas palavras, me pareceria uma heresia...”

Entretanto, a população de Buenos Aires nunca foi e nem é tão severa assim com Gardel. Aliás, não é nem um pouco. E, principalmente, não é tão volúvel. Não declara, em uma hora, seu amor para, na sequência, dar a entender que ele nem é tão grande e sincero assim, como o ídolo fez. Para o habitante da capital argentina, que não o conheceu pessoalmente (por não haver nascido na época em que ele viveu), a imagem do astro é a de um vencedor. É a de um sujeito talentoso e esforçado, que saiu das ruas do bairro pobre de Abasto, da carência e da marginalidade, para o estrelato. E, sobretudo, é a de um homem grato.

Suponho que nove, entre dez argentinos, consideram Carlos Gardel um “self-made-man”, um desses raros homens que conseguem a ascensão social que parecia improvável, se não impossível, graças, exclusivamente, à vocação que tinha e à sua competência e esforço pessoal. Muitos vêem nele uma espécie de Robin Hood do seu tempo, por sua suposta preocupação com os pobres. De qualquer forma, o ídolo foi alguém que concretizou o sonho de um povo empobrecido: o de superar suas tantas carências, ascender socialmente e conviver com o luxo e a riqueza. Quem nunca sonhou com esse tipo de sucesso?

Na imaginação dos seus fãs – tanto dos seus contemporâneos, quanto dos atuais – Carlos Gardel foi amado, e amou, as mais belas mulheres e permaneceu solteiro por excesso de pretendentes, não por falta delas. Ou seja, não conseguiu optar por uma única, entre tantas que o amaram. Quando questionado, publicamente, a propósito, a resposta do cantor era vaga e demagógica. Garantia que amava “todas suas fãs” e não uma específica. Mas... Sabe-se lá.

O fato é que a fama e a fortuna possibilitaram-lhe freqüentar os mais requintados ambientes, apertar as mãos de poderosos – de reis, ministros, magnatas, banqueiros etc. – e cantar e ser freneticamente aplaudido por presidentes e princesas. E, conforme depoimentos de pessoas que conviveram com ele – que não constam em praticamente nenhuma de suas tantas biografias – a fama e a fortuna subiram-lhe à cabeça. Não tinha, entre outras coisas, Buenos Aires em tão boa conta quanto apregoava em público (e que os moradores da cidade acreditavam).

A versão mais aceita para o fato de Gardel jamais haver se casado tem a ver com sua imagem de filho exemplar. Seus fanáticos admiradores asseguram que o cantor nunca se casou para não dividir com ninguém mais o extremado amor que tinha pela mãe. E eles não admitem contestação. Nem tente contestar se não quiser sofrer até alguma agressão, se não física, pelo menos verbal. Entre o fato e a versão, seus fanáticos admiradores optam, óbvio, pela segunda.

Gardel deixou imagem não apenas de filho exemplar e amoroso, que não media sacrifícios para proteger e exaltar a mãe, mas também de amigo leal e desinteressado, sempre pronto a socorrer, fraternalmente, quem estivesse em dificuldades. Era tido e havido como justiceiro e intransigente defensor dos pobres e dos humildes. A veneração por ele chega a tal extremo, que muitos lhe atribuem, até mesmo, o papel de “milagreiro”, num país que sente necessidade atávica de erigir mitos santificados, como o caso de Evita Perón e até do truculento Juan Domingo Perón (para não falar de Diego Maradona, alçado ao altar, pelos seguidores de uma nova religião, que o têm por alvo de veneração).

Em matéria assinada por Hugo Martinez, publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, datada de 16 de junho de 1985, por ocasião do cinqüentenário da morte do cantor, há um depoimento bastante revelador, de Maria Asusena Mitti. Era uma velhinha solitária (que provavelmente já morreu, dada sua avançada idade), que costumava visitar com assiduidade o túmulo de Carlos Gardel no Cemitério de La Chacarita, em Buenos Aires. Essa doce vovozinha expressou da seguinte forma o amor que sentia pelo ídolo: “As seitas se aproveitam do pobre Carlitos. Utilizam seu nome. Eu acredito em Gardel e pronto. Quando estou triste vou até o cemitério, até o túmulo de Gardel, e lhe digo: ‘Carlitos, estou triste’. E ele me olha, sorri-me, me dá alento e forças. Volto com vontade de viver cem anos”.

Pode ser que nem tenha vivido tanto, mas não tenho coragem de criticar a ingênua e crédula Asusena Mitti, por sua estranha ilusão. Essa sua veneração, afinal, é o maior mérito dos mitos. Ou seja, o de dar motivação, mesmo que fantasiosa e sediça, e alento às pessoas solitárias e carentes para, de alguma forma, continuarem amando a vida e lutando para preservá-la. Não consigo condenar isso, mesmo sabendo que é irracional.

Mas não são apenas os idosos, os fechados em seus próprios mundos interiores, e que fazem da solidão suas únicas companhias (por paradoxal que seja) os que tributam tão ingênuo e fantasioso amor ao ídolo. Diariamente, pessoas de todas as idades e condições sociais mudam o cigarro nos dedos da estátua de granito de Gardel no Cemitério de La Chacarita, ritual que já dura décadas. Essa é a forma que muitos encontraram para mantê-lo vivo na memória. Esses seus eternos fãs, na maioria jovens, não querem que seu ídolo seja privado, no além-túmulo, de um dos prazeres que mais apreciava quando vivo. Desejam vê-lo “fumando”, e sempre, tal como o cantor aparecia nas antigas fotografias, amareladas pelo tempo, que seus fieis admiradores guardam como tesouros, como relíquias de inestimável valor e sem preço.

Quem observar as marcas dos cigarros renovados a cada dia nos dedos da estátua poderá constatar que estas vão desde as mais baratas e populares (os chamados “quebra peitos”), consumidas pelas pessoas de baixa renda, às importadas, caríssimas, acessíveis, apenas, aos que ganham muito mais do que necessitam para viver.

Buenos Aires é democrática, portanto, no amor que devota a um dos seus principais mitos. Preserva não somente sua imagem – sem se importar se ela é autêntica ou pré-fabricada – mas tudo o que Gardel deixou: músicas, filmes, fotos e tantas e tantas e tantas lembranças. Tudo é disputado, com empenho e veneração, por colecionadores, idosos e jovens, ricos e pobres, instruídos e de parca ou nenhuma instrução. E pensar que todo esse amor nem sempre foi recíproco...

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Nenhum comentário:

Postar um comentário