O
aceno definitivo de Drummond
*
Por Alcides Villaça
Farewell''
surge (e por que só agora?) como o aceno definitivo que nos faz
Drummond, caminhante desencantado, antes de desaparecer atrás da
última ladeira. O poeta sempre estimou figurar-se numa estrada, numa
rua, num caminho, como um ''gauche'' paralisado pela pedra-enigma, ou
disfarçado num mítico e desengonçado elefante de fabricação
própria, ou como o filho que um pai virgiliano conduz pelo reino dos
mortos, ou como o divagante desistido das ofertas miraculosas da
máquina do mundo.
Este
belo livro não pretende ser
o ''tour de force'' expressivo dessa trajetória, nem traz a
revelação essencial poupada para a hora extrema. Já nos anos 60,
com a melancolia da maturidade e os primeiros desprendimentos da
velhice, o poeta firmara certa indisposição para prosseguir na luta
com as palavras. O último poema de ''Lição de Coisas'' (1962) –
livro marcado pela revisitação dos temas e por algum
experimentalismo formal – fechava-se com este terceto, no qual
Drummond se dirigia à sempre esquiva Forma de todas as formas, para
assim resignar-se:
''E
não encontrar-te é nenhum desgosto
pois
abarrotas o largo armazém do factível
onde
a realidade é maior do que a realidade'' (''F'').
De
fato: no livro seguinte (''Boitempo & A Falta Que Ama'', 1968) e
nos demais, Drummond já não se empenharia em debater-se nas
contradições mais fundas do sujeito ou em tensionar ao máximo a
linguagem; passou a alargar generosa e detalhadamente os quadros das
antigas percepções de menino e adolescente e a tratar do amor, das
pessoas e das circunstâncias com o descompromisso de quem mais
avalia a cena do que quem nela atua.
Adeus
discreto ''Farewell'' poderia lembrar de imediato a família dos
''Boitempo'', mas agora todo memorialismo surge no registro grave de
quem se dispõe à despedida definitiva, soturna e sem tragédia –
como convém ao poeta de ''Claro Enigma'', que ora reafirma, de modo
irrecorrível, o postulado schopenhaueriano da unificação universal
do sofrimento. Não, ''Farewell'' não tem nem terá buscado ter,
como conjunto, a pegada dos grandes livros dos anos 40 e 50, quando o
poeta nos desvelava, em cadências, imagens e reflexões de beleza
inexcedida, os custos da hesitação individual entre buscar
objetivamente pertencer ao mundo intimamente condenado ou deixar-se
engolfar em treva própria, refratária à mundanidade – na atração
alternada pelo mito íntimo e pela história, pelo lirismo e pelo
argumento, pela metáfora e pelo conceito.
Mas
a luz definitivamente crepuscular que este livro faz incidir sobre
todos os momentos anteriores oferece-lhes uma nova perspectiva de
interpretação, tanto quanto podem ser eles essenciais a quem busque
interpretá-los. O sentido deste adeus é discreta mas
cerimoniosamente remetido à significação integral da caminhada; é
a face última, que encerra uma sucessão de ''personae'' figuradas
pelo caminho: o menino furtivo e imaginoso do sobradão e dos campos
de Itabira, o adolescente rebelde dos internatos, o boêmio
''gauche'' e modernista da conservadora Belo Horizonte, o burocrata
federal fabricante de símbolos sociais insustentáveis, o amargo e
introspectivo Orfeu na nova ordem mundial, fria e cinicamente
pacificada, o memorialista-cronista que volta a ''ser menino'' no
direito conquistado da velhice.
Em
''Farewell'', o caminhante ao fim da linha carrega como relíquias
algumas imagens obsessivas: as da múltipla Greta Garbo amada na
tela, das pinturas dos grandes mestres, da senhorial e vasta casa
paterna, das velhas e manipuladas fotografias, da aparição
fantasmática da amada – o tesouro fragmentário que foi possível
acumular em estoque que ora ao Nada se oferece:
''Quero
a última ração do vácuo,
a
última danação, parágrafo penúltimo
do
estado – menos que isso – de não ser''.
Despedindo-se,
Drummond aciona seu materialismo derradeiro (até onde um grande
poeta possa ser materialista) com a consciência de quem, havendo-se
inaugurado como um ''gauche'', sabe enfim que a melhor máscara tem
pouca serventia diante da morte.
O
leitor de ''Farewell'' transitará por poemas de valor desigual, mas
haverá de se deter em muitos, como ''Unidade'', ''A Casa do Tempo
Perdido'', ''A Ilusão do Migrante'', ''Aparição Amorosa'', ''Arte
em Exposição'', ''Bordão'', ''Imagem, Terra, Memória'',
''Invocação Irada'', ''O Peso de Uma Casa'' –
e em quantos mais recupere, pela linguagem lírica, a beleza
construída e comungável. Linguagem lírica: esse discurso poético
que pode revelar ao próprio criador uma imagem sua, logo reconhecida
como a imagem de muitos.
O
discurso poético de Drummond pautou-se quase sempre, e aqui também,
por uma falsa antieconomia sintática, na qual os supostos acessórios
tornam-se pontos decisivos para a cadeia substantiva das imagens.
A
obsessão em voga pela síntese extrema, pelo mínimo de palavras,
pela usura de nomes (curiosamente agenciada por quem prega as
vantagens do consumo supérfluo), ignora que a relação de síntese
poética que conta se dá entre as palavras materialmente
apresentadas e o alcance da significação que irradiam. Por vezes, a
verdade construída no plano artístico rende-se a outra, que nenhum
homem pode construir.
A
força particular de ''Farewell'' está em transcender, aqui e ali, o
trunfo puramente estético do criador mais potente, para instalar-se
no plano limiar da morte, de onde ilumina o já-perfeito. E o que
ilumina? Alguns ''topoi'' da poesia drummondiana recebem, neste
livro, a última demão de luz, antes da sombra final. O leitor
reconhecerá essas derradeiras atualizações: a figura inaugural do
''gauche'' culmina na de ''O Malvindo''; as origens familiares e
provinciais reinterpretam-se em ''A Ilusão do Migrante'', ''Imagem,
Terra, Memória'' e ''O Peso de Uma Casa''; todos os cabarés
mineiros vingam-se da hipocrisia oficial em ''Cabaré Palácio''; a
condição de poeta-funcionário (magistralmente avaliada na crônica
''A Rotina e a Quimera'', de ''Passeios na Ilha'') sintetiza-se em
''Escravo em Papelópolis''; a pequenez do indivíduo diante do mundo
grande torna-se cósmica em ''Noite de Outubro''; a especulação das
palavras está em ''Verbos''... E que mais? O fundamental: a
revisitação e o adeus às instâncias maiores, o Amor e a Morte.
Qualquer
impasse romântico desses dois temas fundadores está decididamente
afastado por um Drummond que deseja ''Não mais o sonho, mas o sono
limpo/ de todo excremento romântico''.
Mas
entre o desejar e o alcançar essa duvidosa paz sem nome, há que
passar o poeta pela degradação da carne – o tema mais forte do
livro. Aquele a quem já deprimia a ameaça das dentaduras duplas, na
casa dos 50, vê agora o corpo descumprir os velhos pactos do desejo
e arruinar-se na exalação da velhice, na ''envilecida carne sem
defesa''.
Ainda
aqui, no entanto, a oscilação de base entre o idealismo e o
realismo, marca de brasa dessa poesia, deixa um vestígio pungente: a
ruína do corpo ainda está habitada, e de dentro sai a voz para o
alto:
''Ó
minh'alma, dá o salto mortal e desaparece na bruma, sem pesar!
Sem
pesar de ter existido e não ter saboreado o inexistível.
Quem
sabe um dia o alcançarás, alma conclusa?''.
Vestígio
apenas resistente, é certo; somam-se mais intensamente os momentos
da plena escatologia, nos quais a ironia acusa seu poder de
autoflagelação
(''aquela
ferida que inflijo
a
cada hora, algoz
do
inocente que não sou?''),
… o
chamar pelo outro faz-se inócuo
(''Resposta
nenhuma.
A
casa do tempo perdido está coberta de hera
pela
metade; a outra metade são cinzas'')
…
e
as experiências repetidas reciclam o mesmo absurdo
(''Como
(...) suportar a semelhança das coisas ásperas
de
amanhã com as coisas ásperas de hoje?'').
A
unidade do mundo enfim se confirma nessa fatalidade de existir que
une flores, pedras e animais; entre estes, não nos consola ''sequer
o privilégio de sofrer''.
O
sentimento amoroso dividiu-se, na formação do homem e na obra do
poeta Drummond, entre a plenitude gozosa do prazer natural e o desejo
do sublime, que aporta na melancolia. Referências um para o outro, o
corpo que experimenta e o espírito que investiga contracenam
duramente em toda a poesia drummondiana. Em ''Farewell'', o drama
ainda se reencena, deixando-se resumir nos acordes em surdina do
''Bordão'':
''Em
torno de um bordão organiza-se o espírito. (…)
Nada
ocorre de belo, nada ocorre de mal
fora
da sonoridade do bordão''.
As
inflexões desse bordão organizam também o livro: as meditações
cósmicas contraponteiam com muitos objetos de amor, a começar pela
amada, fonte de consolo e tormento, e enlaçando a terra mineira, uma
criança, um gato, um tucano morto, uns cavaleiros, uma tanajura.
Pragas
do pieguismo num discurso assim polarizado, conduzido com
determinação de mestre, as metáforas ganham um lastro reflexivo
que só lhes aprofunda a beleza, ao mesmo tempo em que as restrições
da avaliação crítica irrompem do fundo da experiência poética.
Devemos à inteligência e ao lirismo da poesia de Drummond essa
particularíssima projeção da afetividade singular nos quadros da
vida social permanentemente avaliada, com o que soube o poeta afastar
as pragas do pieguismo chocho ou o formalismo autossuficiente,
voltando-se para as contradições do sujeito moderno com o justo
rigor de quem se identifica na negatividade e na ironia que lhe
competem.
A
iminência da morte não ajudou Drummond a vencer a última batalha,
pois as mais terríveis palavras da poesia não dão notícia do
silêncio puro, se o querem qualificar. Tudo o que ressoa como
expressiva ausência é ainda obra delas, que cantam e desmentem seu
poder de anulação.
A
pasta de poemas organizados em ordem alfabética sob o título de
''Farewell'', guardada na gaveta, repõe com força propriamente
material a questão agônica do poema ''Nudez'', de ''A Vida Passada
a Limpo'' (1955):
''Minha
matéria é o nada.
Jamais
ousei cantar algo de vida''.
A
força da negação poética é diretamente proporcional à sua
afirmação enquanto forma. O poeta mineiro bem o sabia, e por isso
enfrentava também a força das interrogações, que lhe abriam
caminho para novas negativas, numa cadeia dialética de paixões e
desistências, de empenhos e braços caídos.
O
livro-despedida, surpreendendo-nos quase dez anos depois de sua
morte, encerra a última ironia de quem viveu essa separação
projetando um reencontro de vingativa e profunda beleza. O fato
também pode sugerir que nenhuma grande obra poética fica exatamente
''completa'': continua a refazer-se, menos pelo acréscimo de alguns
originais insuspeitados do que pelas necessidades do público, que a
confirmem como importante para a vida.
Efeitos
muito objetivos sobrevêm
à publicação de ''Farewell'': as futuras antologias devem prever
espaço para novos poemas, os leitores mais jovens têm nas mãos o
livro novo do morto consagrado e os leitores mais velhos reconhecem a
voz nas novas modulações. O poeta tornou-se ele próprio uma
''Aparição amorosa'', a quem poderíamos devolver palavras desse
poema:
''Já
nem distingo mais se és sombra
ou
sombra sempre foste, e nossa história
invenção
de livro soletrado
sob
pestanas sonolentas''.
Poderíamos,
mas não devolvamos. Há uma tarefa a que toda beleza incita, que é
prosseguir reinventando-a. A cada vez que se encontra uma forma
própria dessa reinvenção, a ironia se livra da sombra do cinismo e
se ilumina na praça como poesia furtada da morte.
* Poeta e professor de Literatura.
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