Precursor da ficção
científica
Gosto
de ficção científica. São histórias que me atraem, sobretudo,
por misturarem conhecimentos reais – de física, química, biologia
e astronomia, por exemplo – com a mera imaginação do escritor,
que faz todo o tipo de extrapolações possíveis e imagináveis e
torna o impossível em absoluta possibilidade, quase certeza. Sou
leitor compulsivo desse tipo de literatura. E, liminarmente,
considero os livros de Isaac Asimov os melhores desse tipo.
Agora,
porém, faço-lhes um desafio. Vocês sabem quem foi, no Brasil, o
precursor das histórias de ficção científica? Forcem a memória,
façam um exercício de imaginação e depois me respondam. Ah, ainda
não conseguiram sequer imaginar quem foi? Pois lhes informo: foi
Machado de Assis! Sim, senhores, não se espantem. Foi, mesmo, o
nosso querido “Bruxo do Cosme Velho”.
Vocês
não se lembram de nenhuma história do gênero escrita por ele? É
que talvez desconheçam seu conto “O Imortal” – escrito em
pleno meado do século XIX – ou, se o leram, não conseguiram
estabelecer relação entre esse picante (e inteligente) enredo e a
ficção científica.
Essa
é outra demonstração, outra prova – como se ainda fosse preciso
provar qualquer coisa quando se trata de Machado de Assis – da
genialidade do nosso mais completo e maior escritor de todos os
tempos. Não sei se devo classificá-lo de gênio ou de mágico. Na
dúvida, classifico-o em ambas categorias. E que me desmintam os
puristas.
Cabe,
aqui, um esclarecimento. O que caracteriza a ficção científica não
são apenas histórias que se passem num futuro avançadíssimo no
tempo, em séculos ou milênios à frente, e nem que se refiram ao
espaço, a outros planetas e a seus hipotéticos extraterrestres
inteligentes e que mantenham contatos (amistosos ou conflituosos, não
importa) com os humanos. Pode, por exemplo, abordar o passado também,
desde que una conhecimentos científicos reais com ficção, com
coisas inventadas por alguma mente fértil. Pois é o que Machado de
Assis faz em “O Imortal”.
Quem
ainda não leu esse conto, leia e quem leu, faça uma cuidadosa
releitura. Não vou reproduzir o enredo, óbvio (até para não fazer
o papel de estraga prazer), mas irei me limitar a dar algumas
indicações a respeito.
A
história começa com o médico homeopata, Dr. Leão, que recém
havia trazido essa ciência (que muitos contestam como tal e outros,
como eu, têm verdadeira fascinação por ela) para o Brasil e dava
consultas e fazia tratamentos no Rio de Janeiro, sede, então, da
Corte. O ilustre cientista (para muitos, mero empulhador), narra as
peripécias de seu pai, Rui Garcia de Meireles e Castro Azevedo de
Leão.
Ele
estava na casa do Coronel Bertioga e tinha, como outro ouvinte (e
testemunha) o tabelião do vilarejo, João Linhares. O local? O
próprio Machado o identifica, ou melhor, deixa de identificá-lo: “A
vila era na província fluminense, suponhamos, Itaboraí ou
Sapucaia”. A época da narrativa? Ano de 1855, “uma noite de
novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove
horas”.
O
Dr. Leão começa sua “revelação” dizendo que seu pai nasceu em
1600. O tabelião João Linhares corrige-o, dizendo que ele deve ter
se enganado e que o ano de nascimento seria 1800. O interlocutor,
porém, insiste e garante que foi mesmo em 1600. E depois informa que
seu pai havia descoberto, por acaso, a “fórmula” da
imortalidade.
Antes,
diz que o “imortal” Rui Leão nasceu no Recife. E enfatiza que
foi em 1600. Afirma que ele estava num convento, quando os holandeses
conquistaram a atual capital pernambucana. Como fosse bom cozinheiro,
agrada os conquistadores com sua culinária e estes dão-lhe a
liberdade.
Nosso
personagem (ou melhor, o do Dr. Leão, ou melhor ainda, o de Machado
de Assis), ao cabo de algumas peripécias, refugia-se numa aldeia
indígena. Ali, faz-se amigo do cacique Pirajuá, que lhe dá a filha
Maracujá por esposa. Narra, na seqüência, suas aventuras entre os
índios e desvenda, nesse ponto, como Rui teve acesso ao segredo da
imortalidade. Vai direto ao ponto.
Conta
que o cacique, pressentido a morte, desenterra um vaso que continha
um elixir que, se bebido, faria com que a pessoa não só não
morresse nunca, como também não envelhecesse. O aventureiro, em
princípio, não acredita no cacique, que morreu na sequência. “Por
que ele não se valeu da mistura para sobrevir”?, indaga antes da
morte do índio. Este justifica-se dizendo que estava “cansado de
viver”.
Rui
esquece-se, por um bom tempo, do preparado, até que um dia adoece. E
a doença era tão grave, que o indigitado aventureiro estava às
portas da morte. É quando se lembra do elixir. Resolve tomá-lo,
pois não tinha nada a perder, mas toma apenas a metade do conteúdo.
Miraculosamente se cura.
Na
sequência, o Dr. Leão narra uma série de peripécias, que abrangem
mais de dois séculos de vida do seu pai “imortal”. Ele não
somente não sentia a proximidade da morte, como ainda não
envelhecia. Mantinha o porte e o vigor dos 40 anos, mesmo estando com
200.
Depois
de muitas aventuras, perdas, traições e decepções de toda a
sorte, Rui se enjoa de viver. Quer a morte, anseia pela morte,
suplica a morte, em vão. É imortal. Tenta várias vezes o suicídio,
mas as feridas, que para seres humanos normais seriam fatais, não
lhe causam maiores danos. Um dia, lembra-se do elixir, do qual havia
tomado apenas a metade. Resolve, então, beber o resto e....Morre.
Afinal, pelo princípio básico da homeopatia, de que para curar
determinada doença é necessário valer-se da mesma coisa que a
causa, o elixir da imortalidade resulta na sua morte.
Um
enredo desses só poderia passar, mesmo, pela cabeça de um gênio
(ou de um maluco?) como o “Bruxo do Cosme Velho”. E queiram ou
não os puristas, é uma legítima história de ficção científica,
dessas de nos tirar o fôlego. De quebra, Machado de Assis planta uma
dúvida no espírito do leitor: o Dr. Leão é um tremendo mentiroso,
desses bem criativos e caras pau que mentem sem sequer ficarem
vermelhos, ou um precursor dos marqueteiros de hoje, fazendo
instigante e eficaz propaganda da homeopatia? E vocês, o que acham?
O
Bruxo do Cosme Velho deve, ele mesmo, ter tomado o elixir da
imortalidade que o cacique Pirajuá deu ao aventureiro Rui. E vários
escritores continuam tomando, posto que a conta-gotas, o tal
preparado até hoje. Afinal, não se tornou “imortal”? Não
fundou a Academia Brasileira de Letras, que confere “imortalidade”
(embora apenas do nome e da obra) aos que são eleitos para essa
augusta casa? Pois então!!!
Boa
leitura!
O
Editor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário