domingo, 30 de julho de 2017

Linhagem


* Por Adélia Prado
 
Minha árvore genealógica
me transmitiu fidalguias,
gestos memoráveis:
meu pai, no dia do seu próprio casamento,
largou minha mãe sozinha e foi pro baile.
Minha mãe tinha um vestido só, mas
que porte, que pernas, que meias de seda mereceu!
Meu avô paterno negociava com tomates verdes,
não deu certo. Derrubou mato pra fazer carvão,
até ao fim da vida, os poros pretos de cinza:
Não me enterrem na Jaguara. Na Jaguara, não.’
Meu avô materno teve um pequeno armazém,
uma pedra no rim,
sentiu cólica e frio em demasia,
no cofre de pau guardava queijo e moedas.
Jamais pensaram em escrever um livro.
Todos extremamente pecadores, arrependidos
até à pública confissão de seus pecados
que um deles pronunciou como se fosse todos:
Todo homem erra. Não adianta dizer eu
porque eu. Todo homem erra.
Quem não errou vai errar.’
Esta sentença não lapidar, porque eivada
dos soluços próprios da hora em que foi chorada,
permaneceu inédita, até eu,
cuja mãe e avós morreram cedo,
de parto, sem discursar,
a transmitisse a meus futuros,
enormemente admirada
de uma dor razão alta,
de uma dor dão funda,
de uma dor tão bela,
entre tomates verdes e carvão,
bolor de queijo e cólica.
 

* Uma das maiores poetisas do Brasil de todos os tempos.

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