O incorrigível “Homo Demens”...
O conto “Guerra dos santos”, do escritor siciliano Giovanni
Verga, é um primor de ironia e bom-humor, retratando a mortal inimizade entre
dois grupos rivais, de uma aldeiazinha qualquer da Itália, motivada não pela
política ou pelo esporte, mas por uma forma equivocada de se encarar e de se
praticar religião. Ademais, a controvérsia que relatou nada tinha a ver com convicções
religiosas diferentes, as antagônicas, como cristãos e muçulmanos, como católicos
e protestantes e como outras tantas, que mancharam a história com insanas cenas
de violência e morte. A questão que ele descreve, com tanta naturalidade e graça,
é mais absurda ainda. Envolve adeptos de uma única religião, no caso a
católica, com dois grupos se digladiando para impor os santos de suas
respectivas preferências, no caso São Roque e São Pascoal.
A rixa, que já durava décadas, só chegou ao fim quando a
aldeia foi atingida por duas desgraças simultâneas: a seca, que arrasou as
lavouras locais e uma epidemia de cólera, que matou grande número de moradores.
Só então os dois grupos que se hostilizavam se uniram para rogar pela
intercessão dos dois santos ao mesmo tempo. Claro que não vou sequer resumir o
enredo, para não estragar o prazer de quem tiver o privilégio de ler o livro “A
vida nos campos”, onde este conto é um dos oito que compõem tal obra.
Limito-me, somente, a contextualizar a narrativa de Giovanni Verga.
A guerra dos santos, que o escritor nos apresenta com
tamanha graça e leveza, lembra, e muito, o que ocorre, por exemplo, nos vários
estádios de futebol do Brasil (e, por que não dizer, do mundo) afora, nos dias
atuais, com torcidas organizadas dos vários times confrontando-se aos pescoções,
ás vezes com paus e com pedras, por, no final das contas, nada que de fato
importe. Pelo menos o fanatismo e a mega tolice são idênticos. A história em
questão – classificada por determinado crítico literário (cujo nome me foge)
como “um conto irreverente, cheio de humor mediterrâneo” – soa muito melhor
quando lida no original, em italiano, idioma, aliás, que nem é tão complicado,
por ter a mesma origem que o nosso português. Pincei um trecho do livro, apenas
para dar uma pálida idéia ao leitor desse relato de Verga.
“(...) De pronto, São Roque seguia, tranquilamente,
pela rua, sob seu dossel, com cachorros ao redor. Havia grande número de velas
acesas em torno. A banda, a procissão e o cortejo de devotos foram, de súbito,
interrompidos por um quebra pau imenso. Houve uma debandada geral, uma correria
dos diabos. Eram padres que corriam com as batinas arregaçadas. Trombones e
clarinetes soavam estridentes no ar. Eram mulheres que gritavam. O sangue
escorria pelo riacho. Uma chuva de paus e pedras caía, como se fossem peras
maduras, nas próprias barbas de São Roque bendito (...)”, relata o escritor.
E Verga prossegue: “(...)
Chegaram o chefe da polícia, o prefeito e os carabineiros. Foram levados os que
tinham ossos quebrados para o hospital. Os mais turbulentos foram dormir na
cadeia, presos. O santo voltou às pressas à igreja, não mais a passo de procissão.
E a festa terminou como nas comédias de fantoches. Tudo isso ocorreu devido à inveja
dos moradores do bairro que tinha como padroeiro São Pascoal, porque naquele
ano os devotos de São Roque haviam gastado os olhos da cara para comemorar o
santo em grande estilo (...)”.
Ah inveja, inveja que, segundo a Bíblia foi a causa do
primeiro homicídio da história, quando Caim matou Abel! E o escritor siciliano
segue em seu relato: “(...) Recorreram
(os adeptos de São Roque) à melhor banda
da cidade, soltaram mais de dois mil morteiros e estrearam, inclusive, um
precioso estandarte novo, todo recamado de ouro, que pesava mais de um quintal,
segundo diziam e que no meio da multidão parecia uma brasa ardente, dourada e
luminosa. Tudo isso mexia com os nervos dos devotos de São Pascoal. Até que um
deles, não se contendo, perdeu a paciência e se pôs a gritar, pálido de bílis: ‘Viva
São Pascoal!!!’. Foi quando começou a tal pancadaria (...)”. As reações,
com as respectivas conseqüências, não se parecem, caro leitor, com as das
torcidas organizadas dos times em nossos estádios de futebol?!! Como se vê, o
tempo passa, as gerações se sucedem, mas os comportamentos humanos, posto que em
situações diferentes, nunca mudam. Esse é o tal “Homo Sapiens”, que Edgar Morin
preferia classificar de “Homo Demens”, designação que, ao meu ver, lhe cabe a
caráter. Ou não?!!!
Boa leitura.
O Editor.
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E a cada dia mais demente.Nós no meio.
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